Santa Catarina tem 16 bacias hidrográficas e centenas de rios, cursos naturais de água que desde sempre foram atrativos, primeiro para os povos nativos, depois para os colonizadores e hoje como consequência da urbanização. A lógica era e é simples: onde tem água, tem vida.

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Acontece que o Estado está numa área de transição e variação climática. Esse clima subtropical, associado à geografia, relevo e hidrografia promove o encontro de sistemas quentes e frios e favorece a eventual formação de sistemas de chuva. Junte rio com muita precipitação e o resultado será alagamento — um fenômeno que, não fosse a ocupação humana mal planejada, seria apenas natural e não trágico.

Nas últimas três semanas, choveu em Santa Catarina o equivalente ao que normalmente choveria em aproximadamente três meses. De acordo com a Epagri/Ciram, órgão estadual de monitoramento do clima, não chovia tanto assim desde 1992 nessa época.

Essa chuva toda quase desaguou em tragédia. Desde o dia 27 de junho, 31,7 mil pessoas em 97 municípios foram atingidas por enxurradas, inundação, alagamento ou deslizamento de terra, segundo o relatório da Defesa Civil de Santa Catarina divulgado na manhã de sexta, dia 9.

Fica a pergunta: a culpa é da chuva ou da ocupação indevida do solo?

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— A chuva não é o problema, e sim a interação com o meio ambiente. Vivemos num ambiente debilitado porque interferimos nele. Não temos mais a cobertura vegetal que existia no passado — afirma o diretor do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar (CTTMar) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), o oceanógrafo João Luiz Baptista de Carvalho.

Ambientalistas inclusive preferem usar o termo desastre socialmente construído a desastre natural:

— Os primeiros desastres até poderiam ser naturais, porque não eram em locais ocupados. A natureza precipitava e o volume de água inundava as áreas próximas aos rios. Agora, com um volume bem menor de água já se vê consequências maiores e aí ocorrem os desastres. Por isso o correto é afirmar que são desastres socioambientais, em razão da ocupação indevida do espaço — explica Maria Lúcia de Paula Herrmann, doutora em climatologia e ex-professora do departamento de Geociências da UFSC.

Ocupação irregular próxima a rios é histórica

Se a legislação ambiental fosse respeitada e aplicada, praticamente todas as moradias próximas aos rios deveriam ser demolidas. Desde 2012, a lei número 12.651/12, do Código Florestal Brasileiro (elaborada para estabelecer normas gerais sobre a proteção da vegetação, das áreas de Preservação Permanente e das áreas de Reserva Legal) diz que é preciso respeitar a distância de 30 metros da margem dos rios.

— O Brasil foi colonizado da beira do rio para dentro. As cidades cresceram a partir disso. Se aplicar a lei, a maioria estará ilegal. E tudo terá que ser demolido. O que temos que fazer é regularizar e trazer segurança para esses locais — diz o presidente da Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma), Alexandre Waltrick Rates.

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Cabe ao poder público, segundo Rates, coibir novas ocupações e regularizar as que já existem, um processo de longo prazo.

— Existem áreas antropizadas [termo para locais que foram alterados por consequência de atividade humana] que já não podem mais ser recuperadas. A falha está em não ter fiscalizado e ter deixado construir. Mas isso é uma questão de direito urbanístico, ou seja, cabe a cada município fiscalizar — ressalta.

Rio do Sul, no Alto Vale do Itajaí, é um exemplo. Os rios Itajaí do Oeste e Itajaí do Sul se encontram exatamente na área central da cidade, bairro histórico que foi construído praticamente dentro da água. Há prédios cujas fundações estão inclusive dentro do rio.

— O plano diretor avançou muito nos últimos anos. Um dos grandes problemas é o fato de que o esgoto vai direto para o rio. Portanto quando o nível da água sobe, antes de transbordar na calha, entra na casa das pessoas pelos bueiros — diz Clóvis Eduardo Cuco, da comunicação da Prefeitura de Rio do Sul.

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Falta de planejamento urbano, lixo e mau uso do solo

Lages decretou situação de emergência no começo da semana devido à ocorrência de enchentes e outros danos provocados pela chuva. No dia 8, quando o nível dos rios Carahá e Ponte Grande começou a retroceder, o lixo veio à tona. Amontoados de garrafas, caixas, armários, brinquedos, roupas e pedaços de madeira estavam acumulados em diferentes partes da cidade, obstruindo bueiros e prejudicando a drenagem da água.

De acordo com técnicos em hidrologia da Epagri / Ciram, se a rede de drenagem urbana estiver obstruída, obstaculiza a drenagem. No caso de Lages, a área urbana é semi-impermeabilizada, um efeito da urbanização como calçadas, ruas, estradas.

— O lixo é um dos principais fatores das enchentes nas cidades. Mas isso tem a ver com uma questão cultural da população, que vê o descarte como a parte final do consumo e não tem consciência do papel do lixo no sistema urbano — avalia o geógrafo e professor da Univali, Marcus Polette.

Como evitar que fenômenos naturais se transformem em desastres sociais

A legislação ambiental é clara em relação à conservação das Áreas de Preservação Permanente (APPs), encostas e beiras de rio para salvaguardar a mata ciliar, topos de morros e mata nativa.

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— As regras são simples. Se cada prefeitura elaborar o plano diretor tendo como base as leis federais — e não baseado nos interesses particulares de uso e domínio da terra — os problemas seriam menores. Muitos dos municípios que hoje estão revendo o plano diretor deveriam considerar a questão ambiental como fundamental — afirma o geógrafo e oceanógrafo Marcus Polette, coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência e Tecnologia Ambiental da Univali.

Segundo o pesquisador, não adianta pensar no desenvolvimento econômico e não entender que existem espaços naturais que devem ser conservados. Uma responsabilidade que é do poder público e também da população. A regra é simples? Se a natureza fica conservada, menor o risco de inundação e danos para a população.

Nesse sentido, plano diretor e planejamento urbano devem estar afinados, para que se possa entender a natureza e buscar compatibilidade de ocupação.

— Historicamente, favelas cresceram nas áreas marginais aos rios, onde facilmente inunda, ou nos morros. Muitas dessas áreas foram regularizadas depois da Constituição de 1988. Antes de construir, é valido recorrer à Defesa Civil, que tem hoje tecnologia para entender os riscos em cada lugar — diz Polette.

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Além de planejamento urbano e fiscalização, é possível ainda recorrer à tecnologia para minimizar o efeito negativo de muita chuva. Em áreas inundáveis pode-se usar a técnica de pilotis, ou palafita, um sistema construtivo em que o imóvel é sustentado por pilares ou colunas no térreo.

— Em Itajaí, existem muitas famílias usando essa técnica. A parte térrea é para os cômodos úmidos, como banheiro, cozinha e garagem e o andar de cima para quartos e sala. Algumas casas têm até um guincho para subir móveis maiores para o andar de cima — conta o pesquisador.

— O Vale do Itajaí está mais preparado para lidar com os efeitos negativos da chuva porque já tem experiência e tem equipes que atuam. Mas acima de tudo, é preciso conscientização. Para agricultura, também existem formas de proteção do solo para evitar que haja perda de sedimento e concentração da água — complementa João Luiz Baptista de Carvalho, o diretor do CTTMar da Univali.

Por isso a solução para atenuar tragédias causadas por fortes chuvas é a combinação de regulamentação, fiscalização, obras civis, reflorestamento e melhores práticas de uso do solo.

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— Existe o planejamento estrutural, que envolve a construção de barragens, canais, diques, e o planejamento não-estrutural, que está ligado à educação, conscientização e organização da sociedade. É desafio em termos de educação ambiental finaliza Polette.

Muita chuva é consequência das mudanças climáticas?

As frentes frias que afetam Santa Catarina e provocam altos índices de chuva não são eventos naturais atípicos. Mas ambientalistas e meteorologistas divergem quanto a relacionar o aumento eventual de chuvas ao fenômeno de mudança climática global.

— Há 30 anos, quando se começou a falar sobre mudança climática, havia dúvidas. Mas hoje há indícios. Os últimos cinco verões foram os mais quentes dos últimos 30 anos. E isso acentua os extremos: mais calor, mais chuva, mais seca — opina o oceanógrafo João Luiz Baptista de Carvalho.

Para o pesquisador e professor do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar (CTTMar) da Univali, Sergey Alex de Araujo, ainda não dá para fazer relação com um fenômeno de escala mundial.

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— As últimas chuvas foram áreas de instabilidade que avançaram sobre o Estado, se intensificaram e formaram frentes frias. Não creio que se possa relacionar com mudanças climáticas globais — pondera.

Ele reconhece, no entanto, que a impressão de que em alguns anos chove mais que outros é correta:

— É isso mesmo que acontece, mas não é cíclico. Nos dois primeiros meses do outono passado, também tivemos chuva acima da média histórica, como esse ano.

Chuva de SC vem da região amazônica

Santa Catarina está localizada numa zona temperada do globo. Isso significa que recebe sistemas meteorológicos vindos dos polos e também a influência de sistemas quentes e úmidos do Equador.

— Pela geografia, relevo e hidrografia, acaba acontecendo aqui o encontro de sistemas quentes e frios. Por isso, o numero elevado de tempestades severas, ondas de calor e frio — explica o meteorologista Marcelo Martins, da Epagri/Ciram.

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Parece improvável, mas as principais chuvas em Santa Catarina vêm da região amazônica. No verão, uma zona de convergência de ventos úmidos joga muita umidade sobre a Amazônia, que por sua vez contribui para a evapotranspiração.

— No inverno, a própria umidade da região é deslocada pelos ventos e encontra a Cordilheiras dos Andes, que acaba forçando essa umidade a descer ao Centro do país. Com a ajuda de outro sistema, é empurrada em direção ao sul — explica Sergey Alex de Araujo, pesquisador do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar (CTTMar) da Univali.