Aprovada pela Câmara Federal na última semana, a proposta que revoga a atual lei dos agrotóxicos recebeu maioria favorável dos deputados catarinenses – dos 16, apenas Pedro Uczai (PT) votou contrário ao projeto. No total, foram 301 votos a favor, 150 contrários e duas abstenções. Apresentado na Casa pela primeira vez em 2002, a matéria não estava prevista na pauta do Congresso, mas foi colocada em regime de urgência pelo presidente do Legislativo, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a discussão está novamente no Senado e aguarda o parecer dos senadores.

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Apelidada de “PL do veneno” por ambientalistas e considerada prioridade para a bancada ruralista, a proposta muda a nomenclatura de “agrotóxico” para “pesticidas” e flexibiliza a autorização de agrotóxicos no Brasil. Além disso, atribui ao Ministério da Agricultura o poder de decisão de registro de novos químicos. Na legislação em vigor, a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também participam das definições.

Para o doutor em genética ouvido pela reportagem, a nova lei abre brecha para produtos proibidos e mais tóxicos entrarem no país. Consequentemente, a saúde da população em geral e meio ambiente podem vir a ser prejudicados. Já para representante da indústria dos agrotóxicos, o projeto moderniza o sistema regulatório brasileiro e a aprovação para tecnologias na agricultura da lei de defensivos.

Por questões de saúde, agricultores têm deixado a produção convencional e investido em produção orgânica. Principal grupo interessado no assunto, os trabalhadores reclamam da falta de informação acerca das consequências do uso dos defensivos agrícolas.

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– Nos anos 1990, a gente não usava EPIs e as agropecuárias vendiam os agrotóxicos como remédio – relata Amilton Vogues, 56 anos, trabalhador do campo em Santo Amaro da Imperatriz, na Grande Florianópolis.

Vogues é produtor de tomate e passou a trabalhar com alimentos livre de químicos após ter sofrido com uma infecção no sangue, que teria sido causada pelo uso contínuo dos produtos.

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Família largou o uso de agrotóxicos após patriarca adoecer

Há um ano e três meses, a família Campigotto chora a ausência do patriarca, que morreu em novembro de 2020, aos 70 anos, vítima de câncer. Dois meses antes de partir, seu Romualdo ficou acamado e definhou até a morte. Trabalhador rural desde a juventude, assim que adoeceu, em 2007, resolveu mudar a forma de cultivo da plantação de banana do modo convencional, com uso de agrotóxicos, para produção orgânica.

Osni e o irmão cuidam da propriedade de 3 hectares herdada do pai
Osni e o irmão cuidam da propriedade de 3 hectares herdada do pai (Foto: Patrick Rodrigues/NSC Total)

Foram 15 longos anos de luta contra a doença. Entre cirurgias, internações e idas constantes ao hospital, a esposa de Romualdo, Rosimeri Campigotto, 64 anos, conta que os médicos orientaram o agricultor a parar de utilizar os químicos na produção. Pensando na própria saúde e na da família, Romualdo seguiu o conselho.

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Pequeno agricultor, ele contava com o auxílio dos filhos, Osni e Rogério, para tocar o cultivo no sítio onde vive a família, no interior de Jaraguá do Sul, no Norte do Estado. Com a bomba nas costas e nem sempre com os equipamentos de proteção individual adequados, eles mesmos pulverizavam o mato que crescia em meio à plantação. Também era a família quem jogava o adubo químico no solo e fungicidas na folha do pé da fruta. Foram mais de 30 anos de exposição aos químicos.

Após a morte do pai, Osni e Rogério tocam o bananal no interior de Jaraguá
Após a morte do pai, Osni e Rogério tocam o bananal no interior de Jaraguá (Foto: Patrick Rodrigues/NSC Total)

A viúva lembra que o câncer começou a se manifestar depois que o agricultor sofreu um acidente com o trator gibata que utilizava para transportar bananas após o corte. Primeiro, surgiu um tumor na barriga, que foi retirado em uma cirurgia. Em seguida, descobriu um câncer de pele. Já no fim da vida, Romualdo estava com outros órgãos tomados pela doença.

– A primeira vez o médico disse que era câncer, mas benigno. Só que, depois disso, ele só adoeceu – lembra Rosimeri.

Depois da morte do pai, Osni e Rogério assumiram o negócio dos Campigotto. Os homens, que têm mais de 40 anos, começaram na lida cedo. Frequentavam a roça desde antes de saber andar direito, quando eram carregados pela mãe e colocados dentro de uma caixinha de papelão enquanto os pais trabalhavam.

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Hoje, Osni, 45 anos, reconhece as dificuldades do cultivo orgânico, mas é feliz por ter levado para frente a vontade do pai, que livrou a família do contato contínuo e direto com os defensivos agrícolas.

– Antes, a gente usava bastante agrotóxicos, porque era bananal convencional. A carga saía daqui e ia para o Ceasa, em Curitiba. Em 2009, recebemos o certificado de produtores orgânicos e, desde então, as bananas são entregues em creches e escolas – explica o produtor.

Apesar da suspeita da família, não ficou comprovado por exames que o que pode ter ocasionado a doença de Romualdo foi mesmo o uso dos produtos químicos. Pablo Motriz, médico pneumologista do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (CIATox/SC), entrevistado pelo DC em 2019, disse que há diferentes fatores que podem influenciar no desenvolvimento de uma doença, por isso, há dificuldades em estabelecer uma relação direta com o contato com agrotóxicos.

Dois anos antes de conseguir o certificado de produtores orgânicos, a família Campigotto iniciou a produção de banana livre de químicos. Osni explica que este período foi necessário para que a área ficasse sem resíduos dos agrotóxicos. Desde então, o trabalho passou a ter novas exigências, novos cuidados e mais mão de obra.

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Primeiro certificado para produção orgânica recebido pela família Campigotto
Primeiro certificado para produção orgânica recebido pela família Campigotto (Foto: Patrick Rodrigues/NSC Total)

Pequenos agricultores podem sofrer mais, diz especialista

Para Rubens Nodari, professor da UFSC e doutor em genética, o projeto de lei dos agrotóxicos representa um retrocesso. Além dos riscos trazidos para a população em geral e danos ao meio-ambiente, a nova lei, caso aprovada, vai prejudicar a saúde dos pequenos agricultores, que têm contato mais direto com os químicos.

Com a flexibilização, o especialista diz que podem ser comercializados no país agrotóxicos potencialmente mais danosos à saúde humana.

– Todos os pequenos agricultores que vão usar os produtos correm risco de estar sendo expostos a produtos mais tóxicos. O que o Congresso está fazendo é desumano. Estamos sendo o quintal das empresas desovarem produtos proibidos. Como cidadão, fico desanimado e perplexo como que o Congresso Nacional tomou uma decisão dessas – argumenta.

Nodari diz que as consequências do uso dos químicos pode ser aguda, apresentando sintomas como vômito e dor de cabeça, quando o trabalhador está na lavoura. Ou pode demorar anos e contribuir para o desenvolvimento de doenças como o câncer ou Alzheimer.

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O doutor em genética afirma que o Brasil é um dos países que mais consome agrotóxicos no mundo, no entanto, não é o que mais produz no campo. Ele cita que, na legislação atual, três agentes do governo são encarregados de analisar o novo produto e tomar uma decisão, que precisa ser por consenso. São eles: a Anvisa, que cuida da parte da saúde humana e animal; o Ibama, que cuida do meio ambiente; e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que verifica a eficácia do produto, sem necessariamente entrar no detalhe do risco.

Na nova proposta, segundo o especialista, só o Mapa irá tomar as decisões, podendo escolher entre acatar ou não as recomendações da Anvisa ou do Ibama.

– Mas o Ministério da Agricultura não tem corpo técnico que entenda os riscos do agrotóxico, como vai tomar uma decisão? – critica.

Nodari cita ainda que a proposta altera o prazo para a liberação de novos agrotóxicos por dois anos, sob a justificativa de que os químicos demoram até oito anos para serem comercializados no país. Ele explica que isso acontece com alguns produtos específicos, devido à complexidade da análise dos riscos e à falta de testes.

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– O argumento utilizado pelo relator do projeto é que a nova lei é para possibilitar maior produtividade, comida com preço acessível e segurança alimentar para o nosso país. Mas esse projeto não resolve nenhuma dessas questões – finaliza o especialista.

Para indústria, projeto representa modernização

Christian Lohbauer, presidente executivo da CropLife Brasil, associação que reúne especialistas, instituições e empresas que atuam na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias para a produção agrícola sustentável, diz que o projeto de lei que prevê mudanças no uso dos agrotóxicos representa a modernização do sistema regulatório brasileiro e do sistema de aprovação para tecnologias na agricultura da lei de defensivos.

Ele cita que o assunto já está em pauta há 20 anos e defende a necessidade de uma atualização na legislação. Lohbauer argumenta que, neste período, o país perdeu ciclos tecnológicos, já que produtos novos chegam, mas levam tempo para ser aprovados. Além disso, ele defende que é errônea a fala de especialistas que afirmam que ficará mais fácil de utilizar produtos e que substâncias mais tóxicas serão usadas.

– O Brasil demora, em média, oito anos para aprovar uma molécula nova, um produto novo que é trazido para a agricultura. A média dos países desenvolvidos é de dois a três anos. Muita gente diz que (o PL) passou sem avisar ninguém, que o governo Bolsonaro empurrou sem ninguém saber. Mas a discussão acontece há 20 anos. A lei atual é de 1989, portanto, é uma lei de 33 anos e que se aplica a uma agricultura que não é mais a atual – pondera Lohbauer.

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Um dos pontos positivos do texto, segundo o presidente da CropLife, é que, se os órgãos regulatórios não aprovarem o novo produto no prazo estipulado de dois anos, haverá a possibilidade de as empresas requererem uma autorização temporária. Para ser liberado, basta que o químico esteja aprovado em pelo menos três países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

– O texto também estabelece a análise de risco como o modelo de aprovação de novas tecnologias. Antes, havia um modelo de aprovação baseado no risco, é uma maneira de ver o mundo, digamos assim. Se houver a possibilidade de ter um risco, não aprova, aplica-se o princípio da precaução. Lutamos todos esses anos para que se aplicasse outro princípio: feitas as avaliações técnicas e as análises não apresentaram risco, o produto vai para o campo, e continua sendo avaliado de cinco em cinco anos, como é feito no mundo inteiro – destaca.

Lohbauer rebate as críticas da deputada Erika Kokay (PT-CE), que citou que Bolsonaro liberou “1.500 novos venenos” na mesa do consumidor e diz que a chance de aumentar a produção de produtos mais tóxicos no Brasil é zero. 

Além disso, para ele, é “impossível” que o Mapa passe por cima das recomendações da Anvisa e do Ibama. 

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– Só querem enfiar a coisa do veneno na parada. Mas, se me permite, se está todo mundo comendo veneno há tanto tempo assim, como que todo mundo não morreu? Existe o Para (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos), que é feito a cada dois anos. Ele analisa amostras da feira, de supermercados, frutas e hortaliças… e apresentou o índice de toxicidade de 0,89%. Em exemplos práticos, se come um pimentão fora de conformidade, ele está acima do codex alimentarius. Você precisa comer 20 quilos de pimentão em um dia só para morrer intoxicado – argumenta.

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