Sem eficácia comprovada, a chamada “pílula do câncer” tem sido vendida de forma ilegal pela internet, prometendo uma suposta cura da doença. Para driblar a fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a fosfoetanolamina é vendida como um “suplemento alimentar”, ainda que não o seja, nem se configure como medicamento.
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Segundo médicos oncologistas, o uso desse tipo de produto pode trazer efeitos colaterais desconhecidos e tirar o foco dos pacientes de câncer dos tratamentos que são realmente importantes.
A reportagem da Zero Hora, através do Grupo de Investigação da RBS, se infiltrou em grupos de WhatsApp e Facebook utilizados para comercializar o produto e conseguiu comprar 60 cápsulas da Fosfoetanolamina PhosphoPower por R$ 230, além do frete de R$ 57. A entrega chegou a Porto Alegre em 21 de junho.
O material passou por análise da professora Ruth Hinrichs, docente do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi constatado que o produto não continha fosfoetanolamina suficiente para ser detectada pelos métodos de análise.
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— Esse produto (comprado) é composto de zinco e cálcio, principalmente carbonato de cálcio e óxido de zinco. Não é detectada a presença (da fosfoetanolamina) — afirmou a professora.
Através do método, não é possível identificar a presença do composto quando a concentração é menor do que um. A análise mostra que além de vender um produto não permitido pela Anvisa, os vendedores têm entregue uma pílula sem a fosfoetanolamina prometida.
Grupos divulgam tratamento com “pílula do câncer”
A equipe do Zero Hora conseguiu efetuar a compra em um grupo do Facebook com 27 mil membros. Por lá, diversas mensagens relacionam o composto ao tratamento contra o câncer. Também através do grupo, foi possível acessar um grupo no WhatsApp com quase 180 pessoas, em que as administradoras se apresentam como ativistas e consultoras de tratamento.
O pagamento foi feito por pix a um CNPJ registrado na Receita Federal como sendo da empresa “Nutrihealth Suplementos Alimentares”, com endereço em um coworking de um shopping no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro.
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No grupo, as duas administradoras admitem saber da ilegalidade da venda, e mencionam estratégias para evitar a fiscalização da Anvisa. Elas avisam os participantes sobre a desconfiança da presença de um “olheiro” da Anvisa.
“Eu ainda não identifiquei o olheiro da Anvisa ou a pessoa maldosa que me denunciou e denunciou o pesquisador aqui do grupo, mas eu preciso dar um recado geral sobre a Fosfo (…) quem pediu mais de dois frascos iria receber apenas dois, por hora, porque, graças a essa denúncia, a ANVISA apreendeu metade dos frascos (que eu estou tentando reaver)”, escreveu uma delas.
“Podem perder seu tempo tentando me pegar, será um prazer. Não vou dar mais detalhes do que e como farei por motivos óbvios. Apenas aguarde a fosfo chegar no seu endereço na semana que vem”, completou, em menção aos supostos “olheiros” do grupo.
Márcia Silva, uma das administradoras, negou ter sofrido com apreensões da Anvisa em entrevista à reportagem do Grupo de Investigação da RBS.
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— Meu produto apreendido pela Anvisa? Não. Até porque a fabricação dela é de janeiro, chegou no Brasil em fevereiro alguns frascos pra mim que o fabricante me mostrou, queria que eu visse. Tenho até aqui a documentação e paguei imposto, inclusive. E tô batalhando, fazendo a divulgação sim, da phosphopower, como suplemento para imunidade. Quem quiser faz a importação, mas pelo que eu saiba nunca ficou nada parado na Anvisa — afirmou.
Questionada, a Anvisa reforçou a ilegalidade no comércio da substância no país. “Nenhuma empresa possui autorização para venda/fornecimento de fosfoetanolamina em território nacional, seja como medicamento ou suplemento alimentar. Caso seja identificada a comercialização de produtos irregulares por meio da internet, com preços em reais, o responsável será investigado e medidas administrativas podem ser adotadas”, destacou.
A história da fosfoetanolamina
A fosfoetanolamina, produzida pelo professor Gilberto Chierice no laboratório de química da Universidade de São Paulo (USP), foi apresentada nacionalmente nos anos 2000. A promessa era que o tratamento de câncer fosse revolucionado com o novo “medicamento”.
Contudo, a substância foi distribuída a pacientes sem testes clínicos, desde a década de 1990, em uma busca desesperada pela cura. Na propaganda boca a boca, o produto ficou conhecido como “pílula do câncer”.
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Em 2014, ainda sem autorização, a USP proibiu a produção da substância em seus laboratórios. O tema chegou como projeto de lei na Câmara dos Deputados, no Senado, e foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff (PT), em abril de 2016. O texto autorizava o uso por paciente que apresentasse laudo de neoplasia maligna e assinasse um termo de consentimento.
Porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a lei inconstitucional e proibiu o uso antes de qualquer aprovação pela Anvisa. Os sete testes clínicos realizados não tiveram resultados positivos.
— O resultado foi rigorosamente igual ao placebo. Em outras palavras, usar a fosfoetanolamina ou usar uma pílula só com farinha tem resultado rigorosamente igual. Tumores que já cresceriam, continuaram crescendo. E aqueles que iriam diminuir, continuaram diminuindo. (A pílula) Recheou uma espécie de imaginário popular de que pudesse mudar a história da doença e muitos mercadores de esperança se aproveitaram dessa vulnerabilidade das pessoas — explica o oncologista clínico Stephen Stefani, médico do grupo Oncoclínicas.
*Com informações de Zero Hora
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