Em busca de autonomia, a aposentada Luzia Clelia de Morais Vieira faz o trajeto de Navegantes a Joinville toda semana. Com os cabelos bem branquinhos, que mais parecem nuvem, ela não desiste de transformar o mundo em um lugar mais acessível. A luta é lembrada nesta quinta-feira, Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência.
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A cada sorriso, algumas preguinhas se acumulam no canto dos olhos e da boca da senhora. As marcas demonstram a principal singularidade da personalidade dela: a sabedoria. Aos 81 anos – muito bem vividos, como ela faz questão de enaltecer –, Luzia sempre lutou para ser vista e inserida em qualquer espaço, independentemente da sua condição sobre rodas. A aposentada nasceu no Rio de Janeiro e aos dois anos contraiu poliomielite. Como sequela da doença, teve paralisia nas duas pernas.
Na mesma época, perdeu a mãe por causa da tuberculose. Como o pai teve dificuldades para cuidar dela e dos outros 11 filhos, entregou-a para a adoção. Luzia não se queixa das adversidades, mas também não as utiliza como motivo para desanimar. As situações vivenciadas ao longo da vida são utilizadas como combustível para superar os obstáculos. A grande convicção da vida, segundo Luzia, é a de não desistir de lutar pelos seus direitos.
A senhora nunca deixou de frequentar locais por não ter entrada para cadeirantes. Por enxergar como direito básico o de ir e vir, Luzia ia aos lugares e reivindicava o acesso. Com toda essa coragem, construiu boas memórias. Ela casou, teve um filho e adotou outro. À época que os dois eram pequenos, o cenário no País era outro: pouco se discutia sobre acessibilidade.
– As pessoas apenas nos olhavam como coitados, mas, além disso, tinha outras questões. Até meu marido ficou com vergonha quando eu arrumei um emprego formal e ele trabalhava na rua vendendo bilhete, ganhava menos do que eu – conta Luzia com uma gargalhada – O mundo era outro, minha filha, mais machista e difícil de viver do que hoje.
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Durante muito tempo, morou em Joinville e depois mudou-se para o litoral com o filho. Atualmente, ajuda outras pessoas com deficiência na Associação dos Deficientes Físicos de Joinville (Adej) a garantirem o direito de ter acesso a qualquer local. Luiza acredita que a estrutura joinvilense, assim como a da maioria das cidades, ainda precisa evoluir muito para incluir as pessoas com deficiência.
– Um grande exemplo é essa rua aqui (José Elias Giuliari, no Boa vista). É onde fica a associação dos cadeirantes e eles mal conseguem chegar: calçadas precárias, a rua não tem rampa, não tem faixa de pedestre… Faz sentido isso? – argumenta.
Para trafegar na via, a senhora divide o espaço com os veículos.No dia em que a reportagem conversou com ela, uma carreta também estava estacionada na rua, tornando a travessia ainda mais perigosa.
Em nota, a Prefeitura de Joinville informou que trabalha para melhorar acessibilidade em ambientes públicos. Muitas melhorias já foram realizadas, como o acesso ao Mirante, onde foi instalada uma rampa. O elevador deste ponto turístico vai passar por manutenção e em breve estará funcionando. As escolas estão passando por adaptações e há um cronograma de obras para que haja acessibilidade em todas as unidades até 2020. Um grupo técnico foi formado pelo município e entidades com objetivo de definir regras sobre as melhorias de acessibilidade em prédios privados e comerciais.
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Não é só infraestrutura
De acordo com o presidente da Associação Joinvilense para Integração dos Deficientes Visuais (Ajidevi), Paulo Sérgio Suldóvski, as melhorias para promover acessibilidade precisam ser pensadas em um conceito amplo. Não basta melhorar a infraestrutura das ruas e calçadas, mas esquecer dos semáforos adaptados, de eventos e peças de teatros com audiodescrição etc.
– A acessibilidade precisa ser vista (e melhorada) como um todo, não podemos nos ater a somente melhores condições estruturais – afirma.
Paulo também defende que é preciso maior conscientização e entendimento da população. Com este entendimento, é necessário desenvolver o senso de inclusão nas pessoas e evitar que as pessoas com deficiência sejam excluídas ou se sintam discriminadas. Conforme dados do Censo de 2010 do IBGE, aproximadamente 23% da população brasileira têm algum tipo de deficiência — visual, auditiva, motora, física, intelectual, entre outras. Em Joinville, são cerca de 120 mil pessoas.
Neste ano, a Comissão em Defesa da Pessoa com Deficiência recebeu mais de 200 pessoas com denúncias. Segundo Adriana Alves dos Santos da Silva, presidente da comissão, entre as principais estão questões sobre o fechamento da ARCD e a falta de acessibilidade em pontos turísticos de Joinville – como o Mirante da cidade, onde o elevador não está funcionando.
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O grupo trabalha para trazer conhecimento sobre os direitos da pessoa com deficiência, promover o diálogo entre as partes quando há denúncia e instigar órgãos públicos e a população a olhar as necessidades que essas pessoas possuem.
Melhorias na estrutura urbana
Para o especialista em acessibilidade Mario Cezar da Silveira, a inclusão precisa atender todas as pessoas. Para ele, a deficiência deve ser um detalhe referencial na hora de se construir uma cidade mais acessível. É preciso levar em consideração que todos podem passar por dificuldades e momentos de “deficiência temporária”. Como idosos, crianças, gestantes e pessoas que têm dificuldades de locomoção, devido a acidentes.
– Caso você tenha sofrido um derrame cerebral, por exemplo, para a medicina não importa se não consegue mais andar pela cidade. Por isso a cidade deve ser planejada e acessível para todos. A pessoa com deficiência é uma referência – afirma.
Em vigor desde 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência presume que toda forma de distinção, restrição ou exclusão em razão da deficiência é considerada discriminação. De acordo com Mario, as construções – seja de espaços públicos ou privados – que não atendem aos quesitos de acessibilidade discriminam diretamente essas pessoas, porque as impossibilitam de terem autonomia de ir e vir.
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Ainda de acordo com Mario, o poder público tem um papel fundamental na regulação e cumprimento deste estatuto. Para ele, algumas ações idealizadas por órgãos públicos podem ser consideradas discriminatórias, como a pintura de faixas de pedestres sem o rebaixamento do meio-fio. O exemplo inviabiliza o trânsito de pessoas com deficiência e pode ser considerada, conforme o estatuto, improbidade administrativa.
– No artigo 11 do estatuto, fica estabelecido que qualquer serviço público deve ser prestado atendendo a alguns princípios, entre eles, o da legalidade. Por causa do princípio da legalidade, a lei instituiu o inciso 9º do artigo 11, que é não promover acessibilidade passa a ser improbidade administrativa – defende.
Mario também defende que não basta construir locais que garantam o acesso de pessoas com deficiência. É preciso assegurar que todos tenham condições de chegar a esses locais. Isso inclui melhorias na estrutura urbana como calçadas, ruas, transporte coletivo, sinalização etc.
Reconsiderando os papéis
O conceito de construir um mundo mais acessível vai muito além de mudanças em construções ou vias públicas, ressalta o especialista Mario Cezar de Oliveira. É preciso gerar reflexão e uma quebra de paradigmas onde cada pessoa seja vista – e respeitada – pela sua singularidade e não como um padrão, é preciso enxergar o ser humano no seu todo. Mario explica que cada parte do corpo é uma ferramenta. O que move os indivíduos não é este conjunto, mas o desejo de querer ir.
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– As limitações, é a cabeça que cria. A pessoa com deficiência pode fazer tudo o que ela quiser, independentemente de ter os movimentos. O que nos move é a intenção de fazer – pontua.
Segundo o especialista, a discussão sobre acessibilidade é recente. Somente em 2015 foi instituído o Estatuto, mas a humanidade existe há quase 200 milhões de anos. Mario também passou por processo de reflexão acerca da acessibilidade. Arquiteto de formação, ele precisou reconsiderar o seu papel na sociedade após o nascimento da filha. A jovem nasceu com paralisia cerebral e tem limitações motoras.
Depois que ela nasceu, ele teve consciência de que a jovem não entraria em algumas construções que ele projetou porque não eram acessíveis para pessoas com deficiência. O especialista revisitou todos os seus conceitos aprendidos como arquiteto e hoje orienta novos profissionais a erguerem um mundo acessível para todos. Os dois momentos da vida de Mario foram divididos por ele em A.C. e D.C. – fazendo um trocadilho de antes e depois com o nome da filha, Carolina.
Agende-se:
Para homenagear o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, a Ajidevi promove hoje a caminhada dos Sentidos.
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O QUÊ: Caminhada dos Sentidos
QUANDO: quinta-feira, 21 de setembro, às 14h30.
ONDE: concentração na Praça da Bandeira, no Centro da cidade. Trajeto: praça da Bandeira, seguindo pelas ruas 15 de Novembro, João Colin, Nove de Março, rua do Príncipe e encerramento no palco da Praça Nereu Ramos.
QUANTO: Gratuito.