As mãos firmes costuram, ágeis, sob um olhar sereno, que não denuncia a concentração dedicada à tarefa. Os olhos, de um tom azul de mar em calmaria, contrastam com a pele acobreada (cor de cobre), envelhecida por décadas de trabalho debaixo de sol. Os pés ainda caminham todos os dias pela areia da praia da Barra da Lagoa, em Florianópolis, mas os braços já não lançam a rede ao mar. De pescador, fez-se artesão de tarrafas, preservando um conhecimento que, após gerações, quase não se transmite mais de pai para filho.

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Luiz Amaro dos Santos, 81, conhecido na Barra como seu Ereno, por referência ao irmão gêmeo que morreu ainda criança, dedica-se há 14 anos à confecção de tarrafas artesanais – uma tarefa que demanda tempo, paciência e dedicação, assim como tarrafear.

– A gente que é pescador aprende por si próprio, vendo os outros fazendo. Só não aprende se for burro mesmo, né – comenta o bem-humorado seu Ereno.

Conhecimento vem da experiência

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Criado entre gerações de pescadores, o artesão vê simplicidade em seu trabalho. Enquanto costura a malha, conversa e explica cada detalhe: a espessura do nylon, a largura da malha, o peso do chumbo que é costurado na base da rede.

– A gente começa com 100 malhas e depois acaba com mais de mil. O tamanho e a espessura dependem do peixe. Pra camarão, tem malha que não passa nem um dedo mindinho – mostra, destacando que, nas tarrafas para peixes, o nylon tem que ser mais grosso, para não arrebentar quando eles se debatem.

Encomendas nunca faltam

Na família de seu Ereno, todo mundo aprendeu a fazer tarrafa, mas ninguém se dedica à tarefa como ele.

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Na Barra da Lagoa e no Rio Vermelho, é nele o primeiro nome em que se pensa quando alguém precisa de uma encomenda. O preço depende mais do tempo empregado na confecção do que dos materiais utilizados – nylon, agulha e chumbo. Uma tarrafa de camarão, por exemplo, não sai por menos de R$ 1 mil, pois demora cerca de dois meses para ficar pronta. Como a malha é menor, o trabalho aumenta.

– A gente não pode andar pra trás, que nem caranguejo. Se não der o preço que eu quero, não leva – conta.

As redes industriais são a metade do valor, mas não têm boa qualidade e os nós se soltam facilmente, inutilizando o instrumento. Ereno também é procurado para consertar tarrafas.

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Conhecimento que veio dos Açores

O historiador Arante Monteiro Filho, que, além de estudar a cultura da Ilha de Santa Catarina, é também pescador, conta que a tarrafa chegou a Florianópolis com os imigrantes açorianos, por volta do ano de 1750.

Na região dos Açores, um arquipélago em Portugal, o acessório era utilizado para a pesca do bacalhau, mas, por ser uma rede que permite capturar uma ampla variedade de peixes, foi rapidamente adaptada para as águas daqui.

Material com fibra de tucum

Compartilhando conhecimentos com os índios carijós, aprenderam a utilizar a fibra de tucum, uma planta que havia no litoral, para confeccionar as redes, já que era difícil conseguir barbante, material utilizado na época.

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– No Verão, à noite, você joga uma luz e os cardumes vêm – ensina.

Nova geração não dá continuidade

De acordo com o historiador Francisco do Vale Pereira, especialista em cultura açoriana, os jovens em comunidades pesqueiras perderam o interesse em confeccionar tarrafas porque a prática está relacionada ao ofício da pesca artesanal, que já não é tão atraente como fonte de renda.

– Os peixes que o mercado valoriza são aqueles que não encontramos aqui, como o salmão. É preciso haver uma política de consumo aos pescados locais e de valorização do trabalho do artesão – explica o historiador.

Filhos não se interessaram

Foi isso que aconteceu na família de Vilmar Ramos Machado, que herdou do pai o conhecimento para fazer tarrafas. No entanto, não haverá continuidade entre seus filhos, pois nenhum dos quatro se interessou por aprender.

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Conheça outros instrumentos típicos

::: Caniço – Instrumento de criação indígena. É uma vara de bambu, com cerca de 3m, à qual é fixada uma linha com anzol na extremidade. Para atrair o peixe, o anzol é lançado ao mar com a isca na ponta. Quando sente o peixe fisgar, o pescador puxa a linha.

::: Jereré – De origem indígena, é utilizado para pescar siri. É um arco pequeno, com rede, que é lançado ao mar e fica amarrado a um pedaço de madeira espetado na areia. Para atrair o crustáceo, se utiliza como isca um pedaço de peixe, geralmente a cabeça. De tempos em tempos, o pescador puxa para a praia e vê se algum siri ficou preso na rede.

::: Coca – Também produzido por índios, é parecido com o jereré, com a diferença de que o pescador manuseia o arco com uma haste e tem que visualizar o pescado para içá-lo.

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Trabalho é o que faz aposentado viver

Para o caminhoneiro aposentado Vilmar Ramos Machado, 67, a confecção de tarrafas é mais do que uma fonte extra de renda para a família, que mora no Sambaqui. Vilmar trabalha mais por gosto do que por necessidade. Em casa, guarda mais de 20 tarrafas que produziu até o fim do ano passado, quando precisou suspender a atividade para operar um câncer de pele.

– O que me faz viver é o meu trabalho. O médico proibiu que eu faça esforço até o ano que vem, e a mulher não quer que eu faça nada, mas quando ela dá uma saidinha eu tô ali costurando – confessa ele, que continua comercializando as tarrafas que estão em estoque.

Duas delas são de estimação e não estão à venda por preço nenhum: a tarrafa verde e amarela, que fez em homenagem ao Brasil, e a azul, da cor do seu Avaí.

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