O tronco de um garapuvu de 80 anos está tombado na Praça Arnaldo de Souza, no Centro Histórico de São José, desde o fim de março. Aos poucos, a madeira ainda verde ganhará forma de uma canoa nas mãos do pescador e canoeiro Rudinei Alves, 47 anos, que herdou a técnica de esculpir do pai.

Continua depois da publicidade

Desde criança observou Paterniano Ernesto Alves, mais conhecido como Terninho, fazer brotar de uma árvore caída uma embarcação. Com a memória ainda afiada, Rudinei transforma lembranças em movimentos e com mãos precisas começa o entalhe.

Todo o processo de transformação acontece ao ar livre num espetáculo pouco visto pelos moradores de São José. Não é para menos, já que a tradição está se perdendo a medida que a pesca artesanal também se esvai. Para piorar a situação, a árvore garapuvu não pode ser retirada normalmente para o entalhe desde 1992. Cabe apenas a momentos excepcionais se tornar protagonista de uma cena como esta.

O tronco de madeira com mais de três metros foi retirado de uma árvore que tombou num hotel da Praia Mole, em Florianópolis. A árvore foi levada para São José em 22 de março, onde havia registros de ainda ter canoeiros. Mas ninguém quis transformar em a obra a técnica que ainda guarda. O escultor de canoas veio de Palhoça, mais precisamente da Barra do Aririú.

Continua depois da publicidade

– Foi difícil achar alguém que quisesse fazer a canoa – diz Lourival Medeiros, que ficou responsável por encontrar uma pessoa que ainda guardasse o conhecimento de transformar troncos em embarcações.

Rudinei, que hoje vive de consertos de barcos e de soldas, aceitou a missão. Esta será a décima embarcação que dará vida na sua curta carreira de canoeiro. Ainda lembra das cenas da infância, quando acompanhava Terninho passar horas e horas vendo dentro de um tronco um futuro barco. A última canoa que seu velho pai fez, aos 83 anos, já faz um década. Mas com a morte dele, o trabalho ficou para trás.

– A profissão não é reconhecida. É coisa que vai se acabando aos poucos – admite o canoeiro.

Continua depois da publicidade

Se a previsão inicial era concluir os trabalhos até o fim de abril, a estreia da canoa deve ficar para o final do mês. A quebra da motosserra atrasou em duas semanas as atividades. Em julho, no Festival de Inverno, Lourival pretende entregar a embarcação para a cidade. Como presente a todos, alguém será convidado a fazer um trajeto no mar, assim como os antigos faziam.

Olhares de espanto

Um homem com um machado na mão ou com uma motosserra contando uma árvore no meio de uma praça é uma cena inusitada. No Centro Histórico de São José também. Enquanto Rudinei tenta trabalhar embaixo de sol ou coberto por uma tenda montada para ele na Praça Arnaldo Souza não é raro alguém passar com olhar de espanto. Alguns curiosos ficam por alguns minutos tentando entender o que está acontecendo. Outros mais corajosos arriscam uma pergunta e até uma conversa. Saciados de seus questionamentos, vão para casa satisfeitos.

– Devem pensar de tudo um pouco. Tem gente que até brinca dizendo que é a arca de Noé – comenta Rudinei.

Continua depois da publicidade

Para quem estiver interessado, o canoeiro continua a conversa, explica como é feita a transformação do tronco em embarcação e até destaca qual o ponto certo da madeira.