No ano em que Santa Catarina vive uma escalada na violência com o aumento de homicídios – principalmente na Capital, onde o número assassinatos em 2017 já superou em 94% o total registrado em 2016 –, a Polícia Militar do Estado atua em um cenário onde o mais intenso fluxo de serviço parte da própria população, incomodada com o barulho dos vizinhos.

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De 1º de janeiro até a metade de novembro deste ano, das cerca de 904 mil ligações atendidas pelos agentes no Estado, 129.857 (14,36% do total) eram para restabelecer o sossego de moradores.

São, em média, 16,9 ligações por hora, de um chamado que demora para ser encerrado entre 25 minutos, caso haja mediação e o denunciado colabore, e 50 minutos, quando não há mediação e se torna necessário lavrar um termo circunstanciado. Cinquenta minutos é a mesma média de tempo que a PM leva para atender a uma tentativa de homicídio sem prisão em flagrante do autor, por exemplo.

Somadas, as três principais ocorrências atendidas pelos policiais do Estado no período representam quase metade de todas as ligações e são, em geral, pedidos de verificações motivados muitas vezes por desordens, como chama a PM.

Apesar de serem considerados atendimentos de risco leve, se houver viaturas e policiais disponíveis no momento do registro do chamado, todas as ligações desse tipo são prontamente atendidas, garante o major da 7ª seção da PM em Florianópolis, Joamir Rogério Campos, que atua no setor de inovação tecnológica, projetos e processos.

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A polícia acredita que outros chamados mais graves poderiam ser atendidos no Estado caso houvesse mais diálogo entre os moradores, já que a PM trabalha não só com a repressão de crimes, mas também com a prevenção.

– Deixamos de realizar algum outro tipo de operação preventiva em determinada área visando a redução de algum crime mais grave – alerta.

Para major, atendimento

deveria priorizar urgências

O major Campos ainda pondera que, quanto menos ocorrências de desordem e averiguação a Polícia Militar tiver, mais o efetivo poderia se dedicar ao trabalho preventivo, por exemplo. Segundo Campos, a perturbação do sossego é uma das ocorrências que mais demanda o policial, principalmente por conta da dificuldade que as pessoas têm de conversar entre si.

Atualmente, as denúncias de perturbação, principalmente por som em volume exagerado, são mais recorrentes na região litorânea do Estado e em grande centros.

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– O perfeito seria que a polícia só fosse acionada para esses casos em situações extremas, quando a mediação, a conversa entre vizinhos, não foi proveitosa. Daí entraria o atendimento policial. Mas não é o que ocorre hoje em dia, tanto que temos um volume grande desse tipo de chamado nas quintas-feiras, nas sextas e nos sábados à noite – conclui Campos.

Cenário em Blumenau mudou pouco,

apesar de lei municipal prever multa

Há quase três anos, Blumenau, no Vale do Itajaí, firmou uma parceria com a Polícia Militar local para implementar o chamado Programa Silêncio Urbano (Psiu), que em seguida foi sancionado como lei complementar pelo executivo municipal. No entanto, mesmo prevendo advertência e, em casos de reincidência no intervalo de um ano, multa de R$ 450, a principal demanda da PM na cidade segue sendo a perturbação do sossego.

Em 2015, quando o programa entrou em vigor, foram atendidas 5.624 ligações, via 190, de vizinhos incomodados com barulhos excessivos. No ano seguinte, em 2016, mesmo com a legislação vigente há quase um ano, houve aumento no total de chamados por esse motivo: 5.699, alta de 1,33%.

O perfeito seria que a polícia só fosse acionada para esses casos em situações extremas, quando a mediação, a conversa entre vizinhos, não foi proveitosa. Mas não é o que ocorre hoje em dia. Temos um volume grande desse tipo de chamado nas quintas-feiras, nas sextas e nos sábados à noite.

Joamir Rogério Campos

Major da 7ª Seção da PM em Florianópolis

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Já neste ano, até o fim de novembro e início de dezembro, haviam sido registradas 3 mil ligações dessa natureza. Segundo o chefe do setor de relações públicas do 10o Batalhão de Polícia Militar de Blumenau, tenente Nícolas Vasconcelos Marques, o número deve aumentar por conta do período de festas no fim do ano. Segundo ele, de quarta para quinta-feira da última semana a polícia gerou, por meio do 190, 20 ligações solicitando atendimento em casos de barulho excessivo.

– Esse número duplica no fim de semana. Em razão do pouco efetivo disponível e do surgimento de outras ocorrências de maior importância. Há ainda casos em que a viatura de desloca para atendimento, mas nada de irregular é encontrado – afirma o tenente.

Ruídos devem ser comprovados

por medição para gerar multas

Apesar de ter multa em dinheiro como uma das penalidades possíveis para o excesso de barulho, a lei e o convênio em Blumenau não exigem o uso de equipamento específico para medição sonora e comprovação de perturbação, o que torna a infração subjetiva, conforme analisa a presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-SC, Rode Anélia Martins.

De acordo com a lei municipal blumenauense, são permitidos diferentes níveis de ruídos conforme o horário. Das 19h às 23h, estão liberados até 65 decibéis (dB), o equivalente a uma conversa em tom normal ou ao ruído de um aparelho de ar-condicionado. Já de madrugada, das 23h às 7h, esse limite cai para 55 dB, pouco acima de uma conversa em voz baixa.

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Em áreas residenciais de Florianópolis, o limite durante a noite e madrugada é ainda mais baixo, 50 dB, equivalente ao ruído produzido por um passarinho cantando, por exemplo. Conforme a advogada, não basta que o som seja desagradável a uma pessoa e aceitável para outra, é preciso provar o excesso, por meio da medição com um aparelho específico, aferido pelo Inmetro, e então emitir um laudo que embasará a aplicação da multa.

– Só o poder repressivo do Estado não é o suficiente para atingir uma meta de qualidade ambiental. A conscientização é um dos tripés para alcançar isso. E a educação é o aspecto mais importante em qualquer medida que se queira nesse contexto – analisa Rode.

Não há como fiscalizar questões

individuais, acredita especialista

O aumento do individualismo e a diminuição do respeito entre os cidadãos em cidades cada vez mais verticalizadas, com alta concentração e fluxo de pessoas são dois dos principais gatilhos que justificariam a dificuldade em criar um laço com a vizinhança. Em consequência, os fatores resultam no alto número de ocorrências geradas a partir de perturbações do trabalho ou sossego alheio, analisa o professor de Direito da Univali e mestre em Sociologia Política, Eduardo Guerini.

Para o professor, hoje em dia as pessoas não se conhecem mais e também não respeitam as regras, como os códigos de conduta de condomínios, por exemplo. Outro problema, aponta o especialista, é “o descaso com leis municipais, que também não funcionam porque não existe como fiscalizar questões individuais”. Guerini acredita que um boa dose de bom senso serviria para colaborar na redução do alto número desse tipo de chamado feito diariamente à Polícia Militar:

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– O que nós estamos colhendo é decorrente da falta de investimento em educação no Brasil, no Estado e nos municípios. Existe uma desvalorização contundente das regras básicas de conduta e ainda vivemos a pedagogia invertida, na qual os representantes não dão bons exemplos para seus representados. É preciso que exista uma solidariedade mínima entre os vizinhos.