Reflexões em Veneza
Aproveitando a pausa de trabalho no atelier, um aperitivo no Caffé Florian, mando aos amigos algumas notícias desta minha temporada veneziana. Sento à mesa em frente à janela, vejo a Piazza San Marco, no final deste outono, com poucos turistas, porém repleta de pombos e muitos fantasmas que fazem parte deste imenso salão.
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Entre os anônimos e conhecidos estão Goethe, Canaletto, Vittore Carpaccio, Doge Andrea Gritti, Giacomo Casanova, Napoleão Bonaparte, Mozart, Tintoretto e até mesmo Marco Polo. Pergunto eu: será que algum dia estarei fazendo parte deste “passeio pela praça” ou quem sabe já não sou um destes fantasmas?
Em Veneza, a medida do tempo não é contada nos relógios, tampouco nos calendários, mas, sim, pelas marés do Adriático, pelo requinte de seus palácios e monumentos, pelos degraus das suas pontes, pelas histórias de seus becos, pelo suave deslizar das gôndolas e pelo olhar de desejo contido atrás de cada máscara. O momento real não tem tanta certeza diante do irreal.
Estou em pleno trabalho, pintando uma Veneza secreta, instalado num imóvel do século 17 que foi reciclado por um conhecido arquiteto e designer (Gaetano Pesce) italiano, na década de 1950, para ser seu atelier. O espaço é belíssimo e generoso, está debruçado sobre as águas do canal do Rio Della Madona dell?Orto, em Cannaregio.
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Com as minhas tintas, tento desvendar o mistério deste lugar esplendoroso, cheio de luxo, requinte, história e uma certa tristeza, que só dói quando se tem algum amor. O meu cotidiano é bastante disciplinado. Acordo com os primeiros barcos que passam em frente ao janelão do atelier. São as lanchas de serviço, o correio, o lixo, a entrega de mercadorias ou o transporte dos trabalhadores.
Mais tarde passam lentamente as gôndolas, com os amantes conduzidos pelos gondoleiros cantantes. Passo as manhãs desenhando e pintando; nas tardes curtas de luz natural, quando já não posso mais trabalhar, vou a museus, igrejas, bibliotecas e livrarias, ou me perco pelos labirintos da cidade que já sei de cor, melhor dizendo, já sei pelo coração.
À noite, sempre um novo restaurante, que também faz parte da minha pesquisa, na busca do bom prato e do vinho da região. Na madrugada, na minha cama no alto do mezanino, observo as águas do canal quase imóveis, entre uma maré e outra, iluminadas pela lua, refletindo os palácios em frente ao atelier, como num espelho de cristal de Murano.
Sempre defini as cidades que vivi como sendo masculinas ou femininas. Veneza é diferente, ela é uma espécie hermafrodita, tem, no seu molhado corpo, todos os sexos. Tento pintar essa ambiguidade, inspirado nas suas águas, arquitetura, Commedia dell?Arte e no Carnaval, que no resto do mundo é uma festa da carne, mas aqui… uma silenciosa orgia da alma. Penso que descobri o encanto e mistério de Veneza, cidade formada de várias ilhas cercada de arte por todos os lados. Não só ela é esplendorosa por si mesma, mas ainda multiplicada nos espelhos das águas. Por um momento, faço parte deste cenário e me sinto eterno.
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O salão de baile mais bonito do mundo é a Piazza San Marco, onde a abóboda do teto
é o céu estrelado de Veneza.
Napoleão Bonaparte
Juarez Machado em sua exposição Veneza, em Paris, vestido de La Bauta, fantasia veneziana usada o ano todo, tanto por homens quanto por mulheres, durante a noite, para cometerem “pecados” e não serem reconhecidos.
Isto no século 18
Veneza é uma cidade única ,onde os homens navegam, os pombos andam a pé e os leões voam.
Jean Cocteau
O povo veneziano é salvo da morte todos os dias pela arte. Juarez Machado
Opps! Minha paixão pelo mar é tamanha que, no domingo passado, desconfio que reproduzi trecho de minha coluna de estreia no DC. Acho, na verdade, que tinha amado demais aquela coluna.