Revisitar lugares, sentimentais ou físicos, mais do que provocar o espelhamento das memórias do que vivemos, desperta um dom natural dos seres humanos: sofrer a melancolia de só poder imaginar os futuros que não tiveram.

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No livro A Perfeita Ordem das Coisas, o escritor canadense David Gilmour refaz o caminho a partir da história de um escritor de 60 anos (alter ego de Gilmour) que se vê em um café de uma cidadezinha no sul da França e decide passar por todos os lugares que, no passado, o fizeram sofrer.

Nessa regressão, ele volta ao internato de onde fugiu aos 15 anos, visita a casa de campo onde o pai cometeu suicídio, encontra amigos dos tempos de escola e, sobretudo, revê suas antigas paixões – todas elas, como bem caracteriza esse sentimento tão carregado de urgência, pontuadas por algum conflito.

É aí que a prosa leve e de descrições precisas do autor dos best sellers Uma Noite Perfeita para ir à China e O Clube do Filme aparece em sua melhor forma. Como na explicação para o título do livro, dada logo nas primeiras páginas, ou na delicada definição para um conceito de Marcel Proust. O intelectual francês, quando tropeçara na pavimentação irregular de pedras numa rua de Paris, sentira-se transportado para Veneza, na Itália, onde, quando jovem, tropeçara em uma escada do mesmo tipo. Um déjà vu, um limbo, um nem aqui nem lá definido por ele como “entre os dois tempos”.

Há também trechos engraçados – a indisfarçável irritação por ser constantemente confundido com o cineasta alemão Wim Wenders (os dois são realmente parecidos) é uma das melhores -, e algumas passagens em que exagera, como na frase “árvores com galhos caídos, como se fossem crianças com braços cansados”.

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Mas é no enredo amoroso que está a verdadeira descoberta de A Perfeita… e, quem sabe, do próprio David Gilmour. Como alguém perdido em sua localização geográfica íntima, extraviado em um ponto aleatório, um turista que visita a própria vida e interrompe a viagem antes da hora, o personagem a certa altura se encontra consolando o próprio filho adolescente, este envolvido em um jogo de conquista e sedução em que não há edulcoração, tampouco vencedores ou vencidos. Apenas a dor de um amor mal resolvido e, por isso mesmo, para sempre lembrado.

A Perfeita Ordem das Coisas, de David Gilmour

Lançamento editora Jardim dos Livros, com 167 páginas

R$ 23,90 (preço médio)