A atriz Tônia Carrero (1922-2018) esteve poucas vezes em Florianópolis. Mas uma de suas frases é lembrada pela classe artística da cidade quando o assunto é a (des)valorização do trabalho.

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— Pedem pra darmos a única coisa que temos para vender.

A expressão foi resgatada diante da polêmica que se formou com a decisão do governo do Estado em não pagar cachê para os profissionais da área que durante cinco dias participaram da reabertura da Ponte Hercílio Luz. A programação do Projeto Viva a Ponte envolveu atrações artísticas, esportivas, gastronômicas e se encerrou na tarde deste domingo com a apresentação da Orquestra de Baterias de Florianópolis.

O papel dos governos é apoiar, incentivar e patrocinar Sílvia Beraldo, professora de música, compositora e arranjadora.

— Não se pede para um engenheiro fazer uma obra de graça ou a um dentista fazer tratamento gratuito. Qual o motivo em se pedir a um músico, a um cantor, a um instrumentista? — indaga Sílvia Beraldo, professora de música, compositora, arranjadora.

Para Sílvia, também autora de trilhas para filmes, a proposta feita pelo governador Carlos Moisés que escreveu nas redes sociais que procurava “gente boa pra solenidade, artistas voluntários (sem ônus para o Estado), mas eternizados na história de Santa Catarina e do Brasil” foi desrespeitosa.

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— O papel dos governos é de apoiar, incentivar e patrocinar a cultura. Esta atitude inverteu o processo, e por isso lembramos da Tônia Carrero: o governador Moisés pediu aos artistas que dessem a única coisa que eles têm para cobrar, o trabalho, fruto da profissão.

Cada um sabe de si, mas existe a depreciação da categoria" Cláudia Zininho, cantora

A cantora Cláudia Zininho também se posicionou de forma contrária. Ela conta ter sido convidada pelo governo para cantar Rancho de Amor à Ilha, de Zininho, mas se negou.

— Achei vergonhoso recrutar as pessoas, pois se tratava de um evento que há 30 anos está aí subtraindo os cofres públicos. Só isso já mostra a disparidade e o absurdo, acrescido do demérito em que o governador coloca a cultura da cidade.

— Cada um sabe o valor de seu trabalho e cobra ou deixa de cobrar o que quiser, mas a depreciação da categoria não é levada em conta.

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Para Claúdia, é importante que se forme uma consciência do papel do artista, do profissional que vive da arte para depois não ter que “esmolar por aí”.

O poder público se mostra adversário e não aliado para fomentar a cultura” Wagner Segura, violonista

Para o violonista Wagner Segura, que há anos mantém uma escola e responsável por ensinar gerações, o pedido do governador em que as apresentações fossem gratuitas é mais uma prova do baixo nível com que a arte e a cultura estão sendo tratadas. Para Segura, ainda que não houvesse verba, o governador deveria ter tratado o assunto de uma forma mais sensível.

— Se o governador de Santa Catarina tem essa cara de pau, o que esperar sobre uma política de cultura? Se a maior autoridade do Estado tem essa mentalidade – e seus assessores, já que nenhum se manifestou em contrário – o que se pode aguardar para os próximos anos?

Para o músico, “o poder público se mostra adversário, e não aliado para fomentar a cultura”. Segura observa que os teatros estão fechados, que não existe uma apresentação nas praças nos mercados, nas praias.

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— A gente se sente envergonhado, mas não se pode esperar nada. Ao contrário, cada vez tem menos participação do governo atual.

Gastam R$ 600 milhões para resgatar o patrimônio, mas não valorizam os artistas da terra" Denise de Castro, cantora

Formada em Música pela Udesc/Ceart, a cantora Denise de Castro também acha que a iniciativa do governador foi desastrosa. A professora de piano, teclado e canto na Escola Livre de Música Compasso Aberto, no centro de Florianópolis, acredita na falta de valorização dos artistas locais:

— Vejam bem: é feito uma festa para entregar um patrimônio histórico à cidade, obra esta onde foram gastos cerca de R$ 600 milhões, se organiza uma festa de cinco dias em comemoração e o evento fica sem uma cara cultural?

Para Denise, o não pagamento de cachê permitiu com que não houvesse cobrança sobre a qualidade das apresentações:

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— Eu atravessei a ponte com uma trilha de um sertanejo desafinado e voltei com uma música gospel completamente descontextualizada. Imagino que os turistas presentes pensaram que aqui não há compositores que cantem a nossa terra — diz.

Segundo a assessoria do governo, mais de 1,1 milhão de pessoas passaram pelo Viva a Ponte.

Para o governo, o Viva a Ponte pretendeu ser um espaço democrático

O governo do Estado reagiu à manifestação dos artistas. Em nota, explica que o projeto Viva a Ponte pretendeu ser um espaço democrático para que diferentes artistas da cultura popular, de diversos estilos e de todas as regiões do Estado pudessem participar do histórico. Com isso, subiram ao palco, durante sete dias de evento, variados estilos musicais, além de folclore, coral e contação de histórias.

Para participação dos artistas o Estado publicou um edital de chamamento público.

O Governo do Estado diz reconhecer e enaltece a importância da cultura para a vida das pessoas e informa ter investido, em 2019, cerca de R$ 9,8 milhões, com recursos próprios, em dois editai para o setor: o Prêmio Elisabete Anderle e Prêmio Catarinense de Cinema. Conforme a nota, foi a primeira vez que o governo estadual pagou no mesmo ano os valores: R$ 5.600.000,00 ao Elisabete Anderle, destinados a projetos de Patrimônio Cultural, Artes e Artes Populares, e R$ 4.260.000,00 para o Prêmio Catarinense de Cinema.