Para o professor de Ciências Sociais da Unisul e cientista político Valmir dos Passos, os dois pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, o já em andamento na Câmara dos Deputados e o apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), são “inconsistentes”, ainda que reconheça que a ideia de crime de responsabilidade possa ter várias interpretações: “A questão das ‘pedaladas’ é essencialmente contábil, não constitui roubo, desvio de recursos públicos ou privilégios. É claramente forçar uma situação para criar um argumento jurídico e depor um presidente”. Para ele, o momento atual da política brasileira é privilegiado para que cada cidadão perceba o posicionamento dos diversos setores que formam a sociedade. “É mais ou menos quando ocorre um fenômeno astronômico em que o cientista aproveita aqueles poucos minutos – de um eclipse, por exemplo – para observar coisas que ele esperou anos para comprovar, pois é quando as coisas se tornam muito transparentes.”Segundo o professor, analisar a política pelo viés da ética e da moralidade é um exercício vão: “Política tem, essencialmente, pragmatismo e interesses. São assim que as instituições agem”. Confira abaixo a íntegra da entrevista publicada na edição deste fim de semana, dias 2 e 3 de abril.

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Entenda os argumentos dos dois pedidos de impeachment de Dilma Rousseff

Entidades patronais e trabalhistas de SC se posicionam sobre impeachment

Diário Catarinense – O que faz com que entidades de tanta representatividade na sociedade venham a público se manifestar sobre um tema delicado como o impeachment sem apresentar justificava jurídica que o embase?

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Valmir dos Passos – Antes de mais nada, penso que todas essas entidades representativas de setores corporativos de empresários e de trabalhadores são instituições políticas. A grande representação se dá pelos partidos, claro, mas todas essas instituições são organizadas e pensadas para representar interesses a partir de ações políticas. Então, a representação que elas fazem não diz respeito só a um pragmatismo de caráter econômico, elas fazem política e atuam no processo eleitoral. É claro que nós estamos vivendo nesse momento uma situação muito atípica, que é o de esgarçamento da crise, mas também é quando temos a oportunidade privilegiada de observar os sujeitos políticos. É mais ou menos quando ocorre um fenômeno astronômico em que o cientista aproveita aqueles poucos minutos – de um eclipse, por exemplo – para observar coisas que ele esperou anos para comprovar, pois é quando as coisas se tornam muito transparentes. Acho que vivemos um momento assim no país. Certas atitudes, que normalmente são mais contidas, pautadas no argumento técnico e jurídico, agora não são mais assim. Agora, certas prudências são deixadas de lado e tudo se torna mais explícito e revelador. No caso específico do apoio ao pedido de impeachment, isso se revela. Claro, o processo é eminentemente político, tanto que se faz nas casas legislativas, mas não se pode concebê-lo em decorrência pura e simples de uma maioria de oposição dentro da casa legislativa, porque isso traria uma enorme instabilidade política e jurídica a todos os níveis de administração. Quando se congregam diversos fatores complicadores da crise, somada à extrema dificuldade de articulação política por parte da presidente, você terá por parte dessas entidades empresariais um manifesto desejo de uma mudança de governo, porque a paralisia política associada à crise econômica é ruim para os negócios. Então, há também essa dimensão pragmática de querer melhorar o ambiente de negócios e de ter um plano econômico para o enfrentamento da crise. Isso é também um reconhecimento de que os governos de Lula e o primeiro de Dilma não colocaram em risco o ambiente de negócios, mas nos últimos dois anos, com as crises, o meio empresarial também avalia que essa composição de governo não é a dos sonhos. Existem representações e blocos políticos que são muito mais afinados histórica e programaticamente com o mundo empresarial. É nesse ambiente que essas instituições se manifestam.

DC – Como o senhor avalia o momento atual em comparação com 1992.

Valmir dos Passos – São dois momentos muito distintos. Em 1992, tínhamos um governo bem diferente. A candidatura do Collor foi, praticamente, avulsa. Ele e amigos resolveram criar um partido do nada, o PRN e na reta final ele enfrentou o Lula, uma candidatura que era vista de maneira muito mais negativa pelo poder estabelecido e pelos grandes grupos econômicos. Com isso, o Collor colheu um apoio maciço desses setores. No entanto, quando adveio a crise, que decorreu, digamos, de uma ousadia e de um despreparo, ao mesmo tempo, do Collor, ao tentar fazer reformas, algumas necessárias, mas de maneira politicamente incorreta e não negociada, ele se isolou. Ele não tinha raízes bem constituídas na sociedade, nem no meio empresarial, muito menos nas classes populares e nas organizações da sociedade civil. Então, quando começa o noticiário sobre a corrupção – e é importante dizer que o elemento corrupção está no centro de toda crise de governo, é sempre o tema a ser explorado por quem deseja fragilizar o governo –, praticamente todas as forças políticas se congregaram contra ele, que não ofereceu resistência. Por mais que tenha tentado conclamar a população, não funcionou. De modo que o movimento que derruba o Collor é um movimento mais ou menos consensual entre os atores políticos daquele momento. Era o combate a um corrupto pura e simplesmente, e ele não tinha como se defender. Hoje é diferente, nós temos uma situação em que, de alguma forma e também por esse ambiente de crise, fica explicitada uma categoria da ciência política que, muitas vezes, é negligenciada: a da luta de classes. Quando falamos, por exemplo, sobre as organizações empresariais em contraposição às organizações dos trabalhadores, é disso que estamos falando. Quando se analisa o perfil dos manifestantes que vão às ruas, eles são mais elitizados – de mais escolaridade e renda. Não quer dizer que a população pobre não esteja apoiando o impeachment, pois as pesquisas indicam que entre 65% e 70% da população apoia. Mas há uma motivação muito maior quando se vê a questão da classe – o perfil de quem está defendendo o governo é claramente classista, de quem tem inserção nos movimentos sindicais, associações de defesa de direitos de camponeses, negros, mulheres e estudantes. Então, é um ambiente muito diferente. Agora, dentro desses grupos que querem uma mudança de governo, se revela um núcleo que tem perfil autoritário, que não reconhece a legitimidade da mediação política feita pelos partidos. Tanto é que vaiam líderes de oposição, o que é muito preocupante. A recusa da mediação política só tem uma saída: alguma forma de totalitarismo, despotismo ou fascismo. E é isso que está muito explícito nas ruas. Nos deparamos com grupos com atitudes claramente assim. Não se trata de uma maioria ainda, mas estão nas ruas, com seus cartazes e suas palavras de ordem, atuando abertamente. Quer dizer, saíram de uma atuação em ambientes mais fechados, privados ou das redes sociais, e estão nas ruas. Infelizmente, muitas pessoas que vão para as ruas, e não têm esse condão ideológico, acabam dividindo a rua com esses grupos, não se importam de estar ao lado de alguém com um cartaz pedindo intervenção militar, ditadura ou lamentando que em 1964 “não mataram todo mundo”. Nessa perspectiva, no momento atual há muito mais esse perfil de classe.

DC – Qual a sua leitura dos argumentos apresentados nos dois pedidos de impeachment, o de autoria de Hélio Bicudo, Miguel

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Valmir dos Passos – Ambos são inconsistentes. Houve um esforço enorme, tanto do primeiro grupo quanto da OAB, de buscar vincular a presidente da República a crime de responsabilidade. Eles trazem vários argumentos, parecendo que tentam constituir uma qualidade a partir da quantidade. Em relação à OAB, houve uma mudança na diretoria que, me parece, mudou também a sua atitude política. Até essa mudança, a entidade mantinha uma atitude política mais ponderada, chegou a fazer essa discussão de impeachment internamente mas concluiu que não havia elementos para fazer o pedido. Mas aí houve a mudança e mudou a atitude. Esse é mais um aspecto da transparência que a crise traz para as coisas. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, chegou a ironizar esse pedido, comentando que “chegou tarde” e que a OAB estaria querendo desfrutar das luzes do momento e ter sua digital na autoria do pedido. A verdade é que a OAB sempre se manifestou de forma muito conservadora e elitizada. Basta lembrar que ela apoiou todo o processo de conspiração de 1964, assim como as associações empresariais que existiam na época. O que se espera das instituições empresariais é que representem os seus interesses e é preciso reconhecer a legitimidade disso. Nós não podemos é nos surpreender quando uma entidade empresarial pretende desalojar um governo que, se não é socialista ou de esquerda, tem preocupações com uma agenda social que muitas vezes não é do interesse do meio empresarial. No caso da OAB, é também expressão do processo de elitização que estamos vendo no nosso meio jurídico. Vamos lembrar que algumas seções da OAB discordam dessa posição, e há um movimento autônomo de advogados contestando. Essa crise está demonstrando que as cortes de justiça no Brasil, que os magistrado, sejam de primeira instância e de tribunais superiores, também têm esse perfil político – o que faz com que, de alguma forma, caia um pouco esse véu da imparcialidade, da objetividade, da letra da lei e da Constituição. A própria Carta é um documento político, e a ideia de crime de responsabilidade pode ter várias interpretações.

DC – O desembarque do PMDB do governo federal causa embaraço ao vice Michel Temer. Ele deveria renunciar, em nome de um imperativo ético, como se tem cobrado, ou falar em ética nesse caso não faz sentido?

Valmir dos Passos – Me parece que todo esse momento está em favor de Maquiavel, que dizia que se a gente procurar Ética na Política não vamos encontrar nada. Não é pelas réguas da ética e da moralidade que a gente vai compreender a cena política. O PMDB fez um movimento oportunista – no sentido político, não moral – de se afastar de um governo que está desmoronando para ser ele o líder de um futuro governo. Então acho que essa tese de que o Temer deveria renunciar é descabida, por mais simpática que possa parecer do ponto de vista da moralidade. É manobra política, faz parte do jogo. Afinal, o Temer foi eleito e não há nenhuma razão para ele renunciar. Eu só pondero o seguinte: como sempre, o PMDB irá se dividir, então a saída formal do partido da base do governo não quer dizer que todo o PMDB vai deixar de votar matérias em favor do governo, inclusive contra o impeachment. De qualquer forma, é uma péssima notícia para a presidente, porque pode incentivar outros partidos a deixarem a base também. Nesse sentido, o PMDB, por ter essa pecha de partido de pêndulo, serve de escudo para outros oportunismos políticos. Em resumo, eu não gosto de fazer análise política a partir do viés da ética ou da moralidade. Acho que é um exercício quase inútil. Política tem, essencialmente, pragmatismo e interesses. São assim que as instituições agem. Os empresários apoiaram muito o governo Lula quando ele estabeleceu uma série de isenções, renúncias fiscais, juros subsidiados, o BNDES abriu os cofres, quando, enfim, se deu como resposta à crise o papel de provedores da liquidez da economia aos entes públicos. Então, naquele momento, era um governo amigo, bom e correto, mas quando os seus negócios pararam de ser contemplados, seja pela crise ou pela situação fiscal do Estado, passa a ser um governo ruim. É isso que move a política.

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DC – Mas a ética na política sempre foi um discurso do próprio PT. A militância acreditava nisso.

Valmir dos Passos – Uma nova política, uma nova forma de fazer política, é um discurso que agora está com a Marina Silva, que tenta resgatar isso. Mas uma coisa é um partido político sem a responsabilidade de governar, que pode ser muito mais fiel aos seus programas, estatutos e bandeiras. Foi como o PT agiu durante muito tempo, no campo oposicionista, procurando trazer essa agenda para dentro do debate político, assim como Rede e PSOL fazem hoje. Mas uma vez que a atribuição de governo se coloca para um partido, a primeira coisa que se estabelece é a necessidade de compor alianças, pois nenhum partido, no nosso sistema eleitoral e com a dificuldade de constituir uma base de governabilidade, pode abrir mão disso. E na medida em que é necessário constituir um bloco de poder para poder governar, as atitudes do partido precisam mudar, não tem como ser diferente. Já antes de 2002 o PT estabeleceu alianças com setores conservadores da sociedade e do meio empresarial. O Lula se elegeu tendo como vice o José Alencar, um dos grandes empresários do país, do PL, parte da antiga Arena e do PDS. Então, nessa conjuntura de governo, é preciso separar o que é o partido e o que é o bloco. Do ponto de vista estratégico, os partidos têm essa prerrogativa de usar esse discurso que passa pela ética, mas nas composições de governo o pragmatismo acaba sendo mais importante.

DC – Não seria melhor então que os políticos deixassem isso claro nas campanhas?

Valmir dos Passos – É interessante. Essa é uma questão com que tenho me debatido muito ao pensar a política nos últimos anos. Existe uma expectativa que foi se criando na sociedade brasileira, e acho que isso tem muito a ver com o discurso midiático, de se buscar uma política higienizada. De se entender a política como se ela fosse, ou devesse ser, uma reunião de homens bons e justos em prol da sociedade. Como se a sociedade fosse uma coisa só e não esse universo complexo, multifacetado e dividido por infinitos e conflitantes interesses. Essa ideia de uma política higienizada, que tem a ética da justiça como princípio, nos leva à Grécia antiga, ao idealismo platônico em relação à política, mas numa sociedade escravagista e altamente estratificada. De alguma forma, subsiste entre nós essa coisa muito alimentada pela mídia de que precisamos é desse tipo de política. Isso é, simplesmente, impossível, porque a base real da política é o conflito social. É do conflito que emerge a política. A política é uma decorrência da decisão da sociedade. Não podemos esperar, portanto, que ela seja uma irmandade pela justiça. É conflito e não adianta ficar esperando que ali as coisas se deem em bases rigorosamente éticas. Quando você espera colher maçã em laranjeira, vai esperar eternamente. Esperar um comportamento ético, límpido, transparente, totalmente correta das lideranças políticas é esperar a vida toda e não encontrar, porque não pode emergir de conflitos uma espécie de consenso ético. O totalitarismo, inclusive, não é outra coisa se não uma tentativa de totalizar a sociedade num único bloco, num único feixe. Quando não se reconhece a importância dos partidos e de seus interesses, que efetivamente representam partes da sociedade, você está defendendo, ainda que sem essa percepção, totalitarismos.

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DC – Nesse sentido, a reforma política seria “inútil” ou serviria para regular melhor esses embates?

Valmir dos Passos – Eu acho que temos muito a ganhar com uma reforma política, pois o nosso sistema de representação é muito falho. Infelizmente, quem pode mudar isso é o Congresso Nacional, que já é resultado de um processo muito precário de escolha e da formação. Tivemos um avanço significativo no ano passado: o fim do financiamento empresarial das campanhas. Veja que Eduardo Cunha e seus liderados tentaram incluir esse tipo de financiamento na Constituição, um processo que transforma as eleições numa grande corrida mercadológica: para o mesmo cargo, um candidato gasta R$ 10 mil e outro, R$ 5 milhões. Entender que isso é democracia é um desvario. Não digo que não vá haver doação empresarial a partir de agora, mas está proibido e, portanto, o Ministério Público Eleitoral terá condições se aparelhar e fiscalizar de maneira rigorosa. Mas essa proibição talvez tenha sido a grande mudança no nosso sistema eleitoral nos últimos 30 anos – e foi feita por uma interpretação da Constituição no STF, motivada, aliás, por um questionamento de constitucionalidade feito pela OAB anterior à mudança de diretoria. Evidente que temos no Brasil um numero muito grande de partidos compondo governos. Se não me engano, são 28 hoje na Câmara. Para isso não há justificativa nem do ponto de vista da representação nem da governabilidade.

DC – Mas faz sentido do ponto de vista da política como palco de inúmeras tensões e interesses.

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Valmir dos Passos – Sim, concordo. Sou rigorosamente contra a ideia de um bipartidarismo como temos nos EUA, onde existe um modelo distrital em que praticamente só dois partidos conseguem subsistir e compor governos. Mas da forma como temos hoje o nosso sistema de votação proporcional com coligações entre partidos nas eleições, nós propiciamos que partidos sejam criados e esse número exagerado acabe ocupando espaço no Congresso. Acho que uma reforma no sistema de votação proporcional, com o fim das coligações partidárias – nas majoritárias, tudo bem –, poderia ser um avanço significativo. Estabelecer que o fundo eleitoral e o tempo de TV se definam pelo maior partido da coligação – e não pela soma deles – seria interessante. Isso tudo seria importante porque é indiscutível que há uma crise de representatividade no país e que a população não se sente representada. E crise de representação é um terreno fértil para o viés autoritário, para tentativas de buscar salvadores da pátria. Há três anos era o Joaquim Barbosa, hoje é o Sérgio Moro e daqui um ano pode ser outro. Isso é péssimo. Uma cidadania que está buscando um salvador da pátria está, na verdade, negando a sua própria condição de sujeito político e principal ator da mudança da sociedade.

DC – Se o impeachment avançar com base nas “pedaladas fiscais”, seria um avanço no sentido de que governos posteriores ficariam proibidos de fazer o mesmo ou esse é um argumento falho para levar qualquer processo adiante?

Valmir dos Passos – Olha, tem um levantamento que indica que esse argumento derrubaria uns 12 governadores. A questão das “pedaladas” é essencialmente contábil, não constitui roubo, desvio de recursos públicos ou privilégios. É claramente forçar uma situação para criar um argumento jurídico e depor um presidente. Vamos lembrar que o Collor sofreu impeachment por causa de um Fiat Elba e de uma reforma na Casa da Dinda. É um argumento absolutamente pueril – e o Collor não foi condenado no STF. Então, não vejo que essa questão contábil tenha o condão de justificar a mudança no governo. O próprio Michel Temer assinou decretos dessa natureza.

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DC – Visto a proporção que ganhou o movimento do impeachment, as ruas também parecem não estar interessadas em justificativas…

Valmir dos Passos – Absolutamente, não. Nenhuma.

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