O que estariam fazendo objetos usados durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais na casa de um morador de Joinville? Doraci José Vodzynski bem que gostaria de responder que o acervo acomodado em caixas de papelão em sua cozinha e sala de estar tem destino definido nos próximos dias.
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Mas uma longa história impede que, por ora, os registros históricos reunidos durante anos por colecionadores alemães sejam abertos ao público. O impasse começa com a chegada dos itens ao Porto de Itajaí, em 2013. O contêiner com mais de 800 peças foi enviado de Weiskirchen, na Alemanha, por um grupo de quatro colecionadores que desde 1946 se dedicam ao resgate de objetos usados pelas tropas e outros que ajudam a reconstruir o contexto dos dois períodos de disputa.
A intenção era levar para fora dos limites da Alemanha uma história que para muitos ainda é parcialmente conhecida. O Brasil se mostrou uma boa opção e a mira se voltou para Pomerode, considerada a cidade mais germânica do País. Com a cassação do prefeito da época, Rolf Nicolodelli, as tratativas entre os colecionadores e Pomerode veio por água abaixo.
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Restava Joinville, cidade também colonizada por alemães e com o aditivo de ser o local onde a esposa de um dos colecionadores, e irmã de Doraci, morou.
Acontece que Rochus Misch, ex-guarda-costas de Hitler e também um dos responsáveis por muitos dos objetos reunidos no contêiner, morreu em setembro de 2013, quando o carregamento ainda atravessava o oceano. Ele era um dos financiadores da ideia de montar um museu das guerras mundiais no Brasil.
– Quando o contêiner chegou ao porto, em outubro de 2013, não havia dinheiro para pagar os impostos de importação. O acervo ficou preso lá durante um ano e a dívida cada vez aumentava mais – conta Doraci.
Cunhado de um dos colecionadores, Doraci, de origem polonesa e que veio com a família para o Brasil ainda criança, tinha receio de que os objetos pudessem ir a leilão. Em outubro deste ano, ele juntou suas economias e resgatou a tesouro histórico. Depois de um ano no Porto de Itajaí, a multa alfandegária passava de R$ 100 mil.
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Deste então, Doraci começou uma corrida para concretizar o sonho dos três colecionadores vivos, que preferem ficar no anonimato. Entrou em contato com a Prefeitura de Joinville, que ofereceu um espaço para exposição, só não autorizou a cobrança de entrada – valor que poderia, com o tempo, ressarcir Doraci do gasto com a retirada dos itens. Descartada a possibilidade, ele encomendou um projeto para montar o Museu da Guerra em um shopping de Joinville, mas também faltou dinheiro para executá-lo.
– Conversando com os colecionadores, chegamos ao acordo de que doaríamos a coleção em troca do pagamento dos R$ 100 mil. Não posso chamar de venda, até porque o valor das peças é muito maior e a maioria delas é fruto de doação.
Esta foi a forma encontrada por Doraci para que um município ou um aficionado por história pudesse dar o fim desejado pelos colecionadores, reunindo o material em uma exposição aberta ao público. Com incentivo financeiro, os colecionadores também poderiam enviar outras peças entre as mais de 4 mil que fazem parte da coleção completa.
– Seria um museu único no Brasil. As pessoas pouco sabem detalhes da participação do nosso País nas guerras – exemplifica Doraci, que cita o Museu do Expedicionário, em Curitiba, como o que mais se aproxima da proposta.
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Rico acervo de memórias
Doraci conta que, com os objetos disponíveis, seria possível montar até dez fartas exposições temáticas. Quase todas as tropas, incluindo a alemã, a brasileira, a francesa, a japonesa, a russa e a americana, são contempladas por itens usados nos fronts entre 1914 e 1918; e entre 1939 e 1945.
Além de objetos do dia a dia das tropas – armas, uniformes e utensílios para alimentação e saúde -, o acervo conta com documentos pessoais, cartas, fotos e registros curiosos, como um arquivo datilografado com dados dos pracinhas, como eram chamados os soldados veteranos do Exército Brasileiro, da Segunda Guerra.
Nas folhas de papel constam nome, idade, endereço e solicitações feitas ao governo após o retorno deles ao país de origem. Outra curiosidade é um livreto, editado no Brasil, que compara a Alemanha com o Reino Unido e debate sobre o perigo do nazismo para o País. O texto também inclui os planos de Hitler para o Brasil.
Grande parte do material está catalogado e é acompanhado de uma foto em que aparecem em pleno uso, o que ajuda a comprovar a autenticidade das peças. O acervo também conta com réplicas, como a máscara usada pelos soldados para sobreviver aos gases nocivos.
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O guarda-costas de Hitler
Rochus Misch foi o responsável por algumas das peças mais interessantes do acervo. Quando houve a queda de Adolf Hitler, o bunker, como era chamado o local de esconderijo, foi saqueado e muitos dos objetos foram recolhidos pelo próprio guarda-costas do líder. Entre eles está uma agenda que não chegou a ser preenchida por Hitler e a máquina de escrever que pertenceu à última secretária dele.
Até morrer, em 5 de setembro de 2013, Misch era o último sobrevivente do bunker e testemunha dos últimos momentos de Hitler. Ele morreu em Berlim, aos 96 anos. Toda a história chegou a ser retratada no filme A Queda: as Últimas Horas de Hitler (2004), cujo guarda-costas era interpretado pelo ator Heinrich Schmieder. Sua versão dos fatos foi registrada no livro Eu Fui o Guarda-costas de Hitler, publicado no Brasil pela editora Objetiva.
– Misch foi preso e pagou, perante a sociedade, pelos seus crimes. Não queremos confundir o museu com uma apologia ao nazismo – reforça Doraci.
O professor de história Wilson de Oliveira Neto, de São Bento do Sul, foi convidado a avaliar as imagens das peças que estão com Doraci José Vodzynski e falou sobre sua impressão deste acervo.
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Você ficou instigado com o material?
Wilson – A minha reação é de muita curiosidade. É um material variado e, ao que tudo indica, autêntico. É interessante porque ele cobre as duas guerras mundiais, não trata apenas do Exército alemão. É um material que remete aos exércitos soviético, americano, brasileiro. Este material despertou minha curiosidade porque ele pode servir de ponto de partida para uma boa reflexão sobre a Segunda Guerra Mundial e as forças que lutaram neste conflito.
O que você acha que é primordial para este material atingir o objetivo de oferecer uma boa reflexão sobre as guerras?
Wilson – A primeira coisa é organizar este material. É preciso fazer um inventário. Nós precisamos saber o que há nesta coleção. E em segundo lugar, começar a estudar, organizar e a dar um formato de coleção. Isso envolve muita pesquisa.
Sobre o ato de colecionar acervos de guerras: como é dentro e fora do Brasil?
Wilson – Nós chamamos isso de militaria. As antiguidades militares são altamente colecionáveis. Os acervos mais conhecidos são certamente da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, existe um mercado de colecionadores, gente que realmente se dedica a colecionar e estudar este material. Inclusive em Santa Catarina temos grandes colecionadores. Mas o principal lugar que concentra colecionadores é o hemisfério Norte, Europa e Estados Unidos, onde as coleções são amplas, com itens raros e valiosos do ponto de vista de mercado e história. Há, nesta prática de colecionar, pessoas que se especializam em vários aspectos destas coleção. Tem gente que coleciona medalhas, trajes, armamentos, entre outras coisas.
Baseado nas coleções que o senhor conhece no Brasil, diria que esta coleção é relevante?
Wilson – Ela é relevante. Agora, ela precisa ser preparada, precisa de estudo e acondicionamento adequado.