Cena da peça A saga em busca de um banho — pelo direito a ter direitos – Foto Lui Mendes, Divulgação

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Aline Salles, que está em situação de rua, levou dois baldes de água fria no próprio corpo, deitada nas escadarias da Catedral de Florianópolis. Encharcada e desesperada, gritou por socorro. E foi aplaudida. 

No entardecer da última quarta-feira, atores dispostos no largo da Igreja Matriz do Centro de Florianópolis foram ovacionados por uma multidão perplexa, boa parte com lágrimas nos rostos. 

A história que contaram foi transformada em ficção, mas é verídica. E eles a protagonizam todos os dias.

O largo da Catedral foi palco da peça A saga em busca de um banho — pelo direito à ter direitos, teatro-denúncia da programação do circuito cultural Paralela Arquitetura e Artes

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A cena fica a poucos metros do local onde muitos deles ocupam, marquises e bancos de praça. A apresentação foi daquelas belezas que te fisgam o estômago para chegar ao coração.

Além de Aline, Erico Vinicius, Mauro Junior, Andre Schafer, Mario Grillo, Leandro Garcia, Frans Azevedo, Gabriel Amado, Ariadne Rinaldi, Daniel (Nego 10), Daimer e Jose Genielson Santos participaram da obra, caracterizados com ponchos de feltro.

O grupo, que integra o Movimento Nacional da População de Rua Santa Catarina (MNPR-SC), ensaiou sob direção da atriz Carolina Pommer, do Instituto Arco-Íris. Mais do que decorar o enredo e falas, construíram juntos o roteiro.

Para o palco de rua, levaram as agonias da própria rua. Desrespeito e falta de empatia com o outro, carência de estrutura do estado para recebê-los, truculência e violência das autoridades, estigmatização. 

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Em uma das cenas, os atores buscam abrigo nas instituições públicas, mas recebem “não” de todas elas. Sem saída, posicionam-se enfileirados e encenam um “caminhar na corda bamba”.

Juntos também cantaram músicas conhecidas do público, ressignificadas pela própria condição de existência. Cantigas populares como Se essa rua fosse minha até hits como Comida, do Titãs. Em coro, reforçaram o refrão do rock: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.

No final da apresentação, todos foram convidados a fazer uma grande roda. Pessoas em situação de rua, estudantes, idosos, deficientes, profissionais liberais, empresários, advogados, arquitetos, artistas. Mulheres e homens de todas as classes sociais. Pessoas.

“Vocês podem não nos ver ao passar pela gente na cidade, todos os dias, mas a gente existe. E nós olhamos para vocês”, disse Andre Schafer emocionado, integrante do MNPR-SC. 

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“Quando essas pessoas produzem o discurso sobre si mesmas, quando essas pessoas fazem a denúncia por si mesmas, quando essas pessoas se utilizam da linguagem teatral como uma maneira de se expressar, elas além de estarem reduzindo vários danos, estão rompendo com toda uma lógica de colonização que a gente tem”, disse a atriz Carolina Pommer, que além de coordenar participou da encenação. 

Ainda molhada, Aline recebeu abraços afetuosos do público. “Andei mal. Recai. E isso aqui foi muito importante pra mim. Eu me senti valorizada”, contou. Resta torcer para que a compaixão continue com cada pessoa impactada pela arte, no real teatro que se chama viver em sociedade.