“Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?”, diz o Evangelho de Lucas. Recorrente na religião, na filosofia e na arte, a metáfora da cegueira para aquilo que os homens não conseguem ou não querem enxergar ganha mais uma interpretação no espetáculo que estreia hoje na Sala Álvaro Moreyra. Exercício sobre a Cegueira é uma adaptação de Camilo de Lélis para a peça do belga Michel de Ghelderode (1898 _1962) que, por sua vez, teria se inspirado no quadro de Bruegel (1525 _ 1569) Parábola dos Cegos. Mas, diferentemente da obra original, classificada como uma moralidade teatral, constituindo-se quase como um sermão espiritual, a proposta de Camilo é outra.
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– O bacana é não ter essa moralidade, mas a compreensão de que a visão que se tem da vida e da sociedade pode ser considerada uma questão de ponto de vista – afirma o diretor, que primeiro utilizou o texto como um exercício em um curso de direção que ministrou no ano passado. – A ideia é que as pessoas saiam refletindo que nossa visão de realidade pode estar equivocada e que não nos damos conta por estarmos todos vendo as mesmas coisas.
Camilo buscou referências no humor cáustico beckettiano para contar a história de três cegos (interpretados por Rodrigo “Kão” Rocha, Davi Borba e Leandro Schimitt) que partem em direção a Roma, na esperança de que o Papa opere um milagre e os cure da cegueira. Em vez de peregrinos medievais, eles surgem vestidos de terno, explicitando a contemporaneidade da trama, aparentemente inofensivos e engraçados como os Três Patetas do cinema. Mas, ao encontrarem um homem de um olho só (João França, que também assina os efeitos sonoros, ao lado de Camilo), revelam-se hipócritas e sórdidos. Apesar de o bem-intencionado velho lhes dar comida e se oferecer para guiá-los, o trio se volta contra ele rumo a um desfecho que se anuncia trágico (ainda mais do que o da peça original), tendo como trilha sonora a melodia da música gospel americana Michael Row the Boat Ashore, usada de forma a acentuar o tom paródico e desencantado.
– É para causar um desconforto e colocar uma situação sem dizer, como o texto original, o que é o certo ou o errado – diz Camilo, que promete ainda um epílogo-surpresa, criado especialmente por ele para esta montagem.
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