Um bichinho se mexe em meu cérebro e nele se abre um mágico prisma regressivo. Recuo não apenas um século, mas dois. E acabo transportado para a vidinha ronceira da Desterro de 1803, época em que a vila era um sossegado quintal, a urbe e a roça misturadas no cacarejar das galinhas e no grugulejar dos perus.

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A vila era um viveiro de pássaros e macacos, uma estufa de flores exóticas. Crioulos de Debret, gotas de suor cintilando no peito ornamental, ombreavam grandes barris de carvalho, transportando o “petróleo humano”. Aquela gelatina escura e pastosa pingava pela Rua do Ouvidor (hoje Trajano) ou pela Rua Augusta, atual João Pinto, em direção a duas praias: a do Vai Quem Quer ou a da Boa Vista, atual Prainha.

Boa Vista? A Casan da época consistia nesse “sistema” de esgoto ambulante, precário penico móvel, por cujos fundilhos escapava o Produto Interno Bruto dos cinco mil habitantes da vilazinha à beira-mar.

Festinhas aconteciam na Sociedade União Catharinense, embrião do Clube Doze, casarão de dois andares, estacionado quase na esquina da Rua Augusta com a Praça da Matriz. Ali, cavalheiros em fraques que recendiam a naftalina conduziam senhoras em vestidos longos de nobres sedas, artigo de luxo, não acessível às famílias menos abastadas.

Flertes havia, dissimulados e coriscantes. Ser alvo de olhares poderia resultar em beliscões na epiderme das mocinhas púberes, aplicados por diligentes mamães, desestimulando a reciprocidade. O que fazer para um encontro com um desses “simpatizantes”, e com ele “ficar” só um pouquinho?

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Impossível. Só algo muito furtivo, urdido com a cumplicidade das mucamas e damas de companhia, verdadeira conspiração para evitar que um casal de “boa progênie” se encontrasse sem autorização dos pais.

Já os desates amorosos dos “trabalhadores”, menos preocupados com esses ritos, aconteciam no Cais da Liberdade, descampado entre o rio da Bulha (atual Avenida Hercílio Luz) e a ladeira do Menino Deus, acesso ao Hospital de Caridade.

A Praça XV era o Largo da Matriz, a Conselheiro Mafra a Rua do Príncipe, a Fernando Machado a Rua do Vigário, a Álvaro de Carvalho a “Rua da Palma”, a Sete de Setembro a Rua da Bragança, a Felipe Schmidt a Rua dos Moinhos de Vento. Ou Rua Bela do Senado.

Imaginem: um Senado associado ao belo…

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