Certamente, vais pisar numa delas no correr do teu dia. Há pelas cidades muitos caminhos recobertos com pedras retangulares. Meu passo está em desacordo com a distância entre elas. Por isso, sempre ando olhando no chão e ponho nelas a mente antes de tocá-las com os pés. Não deixa de ser uma arte de domesticação do espírito. E foi assim que me tornei íntimo dessas pedras aparentemente sem outra serventia que serem pisadas e pisoteadas. Passei a ler suas marcas como se fossem as tabuletas de Nínive. Cheguei ao ponto de passá-las mais com os olhos que com as solas. Há um desaguadouro de afetos quase irreconciliável com sua natureza de pedra. As cicatrizes de nascimento lembram-nos de sua origem ígnea, vindas do âmago da Terra, na forma pastosa do magma que resfria e solidifica ao chegar à superfície.
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A mim, enternecem particularmente as ranhuras provocadas pelo homem. Mais que isso: o ser humano por trás da pedra. São milhões de blocos nas calçadas e meios-fios pelas ruas do vasto mundo. E não há um só deles que não tenha sido formatado pela mão humana. O canteiro, nome que se dá a quem exerce a arte de lavrar e desbastar a pedra para uso em construções, é um ofício antigo e praticamente inalterado, desde a Pedra Lascada. Ainda hoje se usam marretas para bater repetidas vezes sobre ponteiras de metal que vão abrir um pequeno orifício na rocha basáltica. O canteiro abre uma sequência alinhada desses furos e usa uma ferramenta um pouco larga para forçá-los a exercer pressão e abrir a rocha ao meio. E assim, sucessivamente, até chegar ao tamanho e ao formato desejados. Cada corte exige dezenas de marteladas com precisão e contundência.
Pisamo-las com descuido e indiferença, pois, ao rés do chão, só se colocam acima do pó e da lama. Mas detenhamo-nos por um instante a reparar nos sulcos deixados pelas ponteiras de aço, pensemos no labor das mãos que as talharam. Imagina: um trabalhador acordou muito cedo, veio das lonjuras e passou longas jornadas debruçado sobre essa pedra e não desistiu ante a sua tenacidade. Concentrou nela a sua energia, o seu espírito, o seu conhecimento e a sua força criativa. Em sua maioria, foram homens de hábitos rudes, dados ao fumo e à bebida. Mas guardo haver neles um prisma de anônimos Michelângelos abstratos, aprisionados em um cubismo extremista.
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