Eleito deputado estadual em 1962 pelo PTB, Paulo Stuart Wright teve o mandato cassado com o golpe militar de 1964. Pelos nove anos seguintes, viveria como clandestino. Exilou-se no México, viajou a Cuba, entrou na Ação Popular, uma das organizações que combatia a ditadura. Há indícios de que ele foi preso pelo Exército e torturado até a morte em setembro de 1973, em São Paulo. Tanto o habeas corpus impetrado pelo advogado José Carlos Dias quanto as iniciativas do irmão, o reverendo Jaime Wright, para localizá-lo deram em nada. Seu corpo continua desaparecido.
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Ganhador da primeira eleição a prefeito de Balneário Camboriú, Higino João Pio (PSD) foi preso em uma Quarta-Feira de Cinzas, em fevereiro de 1969. Em 3 de março, foi encontrado morto na Escola de Aprendizes Marinheiros, em Florianópolis, onde era mantido incomunicável. Laudo oficial: suicídio por enforcamento. Perícia realizada em 2014: homicídio por estrangulamento, com a vítima sendo colocada no local onde fora encontrada “e suspensa por meio de arame após a rigidez cadavérica haver se instalado”.
Os dois casos são os mais emblemáticos das atrocidades cometidas em Santa Catarina ou contra catarinenses pela ditadura que aterrorizou o Brasil até 1985. Os dossiês dedicados a ambos contêm o maior número de páginas entre os processos de 700 presos políticos, doados pelo coletivo Memória, Verdade e Justiça à Udesc. O acervo ocupa uma pequena sala no Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas, na praça Getúlio Vargas, ao lado do quartel da Polícia Militar, onde muitos ficaram detidos. A história que os arquivos contam, no entanto, é enorme.
O material é composto também por recortes de jornais e revistas, relatórios e gravações em áudio e vídeo e está disponível para consulta pública desde a semana passada, após meses sendo digitalizado. Formado por familiares de mortos e desaparecidos políticos, ex-presos políticos, estudantes, dirigentes sindicais e militantes de direitos humanos, o coletivo surgiu em 2011 para lutar pelo estabelecimento da verdade histórica e o reconhecimento público de arbitrariedades e crimes perpetrados pelo Estado durante os anos de chumbo.
— Agora está tudo parado, ainda falta o governo fazer muita coisa — diz a coordenadora Derlei Catarina De Luca, também presa e torturada durante o período.
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De acordo com ela, das 29 recomendações que a Comissão Nacional da Verdade faz para o governo e a sociedade levarem adiante, muitas não foram seguidas. A lista é grande: admissão de culpa, punição de agentes públicos, proibição das comemorações do golpe, alteração dos concursos públicos para as forças de segurança, modificação nos registros de óbito das vítimas, desmilitarização das polícias militares estaduais, extinção do auto de resistência e introdução da audiência de custódia, entre outras.
Enquanto tais medidas não são adotadas, vale a pena relembrar episódios como a fogueira de livros ateada em pleno centro de Florianópolis, o drama de torturados e cassados, a perseguição aos estudantes presos no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) e os locais que foram usados como prisões, apresentados a seguir. Conhecê-los é o único jeito para que não se repitam nunca mais.
Fogueira da insensatez
As chamas ardem na calçada. Ao redor, os incendiários incitam curiosos atraídos pelo furdunço a condenar centenas de livros à fogueira. A polícia faz um cordão de isolamento e, impassível, assiste ao papel se reduzir a cinzas. Ensaios, romances, dicionários, enciclopédias, lançamentos nacionais e importados: nada escapa da sanha piromaníaca do grupo. Parece cena de algum filme distópico sobre uma sociedade que perdeu o senso crítico. Mas aconteceu no centro de Florianópolis, três dias após ser deflagrado o golpe militar.
No entardecer de 3 de abril de 1964, uma sexta-feira, um bando de civis alinhados com os métodos de persuasão do novo governo arrombou a livraria Anita Garibaldi, quase na esquina da Praça XV com a Rua Conselheiro Mafra. Frequentado por artistas e intelectuais, o estabelecimento pertencia ao jornalista Fernando Pereira Christino, dirigente do partido comunista no Estado. Era o lugar na Capital onde se encontrava títulos mais à esquerda em ciências humanas e sociais, além do fino da literatura mundial e a produção catarinense.
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Naquele dia, o acervo da também conhecida como “livraria do Salim” – em alusão ao escritor Salim Miguel, que a passara adiante em 1959 – foi amontoado na rua e queimado. No domingo seguinte, a capa do jornal A Gazeta trombeteava que “o povo florianopolitano deu provas sobejas de sua fibra democrata, extinguindo um foco pernicioso que há vários anos se instalara em pleno coração da cidade”. O antigo dono, porém, só saberia do ocorrido uma semana depois, já preso no quartel da Polícia Militar.
Na véspera da queima, Salim tomava um cafezinho no tradicional Ponto Chic, na rua Felipe Schmidt, quando foi detido. O fato de integrar o gabinete de relações públicas do governo Celso Ramos e chefiar o escritório estadual da Agência Nacional não impediu que ficasse trancafiado até 2 de maio no alojamento da praça Getúlio Vargas com mais 60 pessoas que vinham chegando de todas as partes do Estado. O crime contra a livraria não seria a única – nem a pior – notícia que ele receberia na cadeia.
Lá, o informaram ainda que o contrato com o governo havia sido rescindido e que a esposa, a escritora Eglê Malheiros, estava presa nas dependências do Hospital Militar. Os quatro filhos – o maior com 11 anos, o menor com quatro – ficaram aos cuidados de uma vizinha e da tia Hend, irmã de Salim. Em pouco tempo, Eglê foi mandada de volta para casa e mantida em prisão domiciliar. Como o marido, perdeu o emprego público, no Instituto Estadual de Educação.
Os relatos de ambos constam dos seus respectivos processos, guardados nos arquivos doados à Udesc. Salim conta que, certa madrugada, acordou com a ponta de um fuzil encostada na cabeça. O soldado que empunhava a arma o ordenou que se levantasse. Embarcaram em um jipe com outro oficial e começaram a circular pela cidade. Ao chegar à cabeceira da ponte Hercílio Luz, um deles pergunta qual seria o impacto de um corpo jogado dali. “Só jogando”, responde o colega.
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“Em liberdade, percebi que Florianópolis era outra. As pessoas se olhavam com receio. A cidade jamais voltaria a ser a mesma”, narra o escritor. O casal se mudou para o Rio de Janeiro e voltou somente em 1979. A fogueira e o período encarcerado são lembrados por Salim no livro Primeiro de Abril, lançado em 1994. Em 1998, o Estado pagou uma indenização de R$ 15 mil a ele e de R$ 20 mil a ela. O proprietário da livraria, Fernando, também preso, levou R$ 5 mil.
Prisão do pai na memória de infância
Apesar de terem melhor sorte do que Higino João Pio, prefeito de Balneário Camboriú morto pela ditadura, os governantes de São Francisco do Sul, Itajaí, Imbituba e Laguna – todas cidades portuárias, com intensa movimentação sindical – também sofreram nas mãos dos militares. No caso de Francisco de Assis Soares, nem a filiação ao partido oficial do regime o livrou da cassação, em 1975. Nos dois anos em que chefiou a administração lagunense, ele construiu escolas nos lugares mais isolados, cedeu 2,5 mil terrenos a quem não tinha casa e promoveu a reforma urbana, entre outras realizações.
— Assim como a direita infiltrava gente no meio da esquerda, meu pai havia entrado na Arena para poder continuar ajudando os companheiros perseguidos. Foi descoberto e o afastaram — diz a filha, Regina Maura.
Não era a primeira vez que a ditadura o punia. Em 8 de abril de 1964, a hoje funcionária aposentada da Assembleia Legislativa (Alesc) se assustou com o barulho de um jipe e dois caminhões passando em frente à casa da família. Dentro da carroceria de um deles estava Francisco, com uma arma apontada para a cabeça. Ao ver a mais velha de suas quatro meninas, então com seis anos, ele sorriu e piscou. A pequena achou que era brincadeira e correu para pedir à mãe para ir junto com o pai. A esposa entendeu na hora o que estava acontecendo: “Pegaram o Assis!”.
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Na época, Francisco era enfermeiro no posto de saúde e participava dos “grupos dos 11”, pequenas células espalhadas pelo país pelo governador gaúcho, Leonel Brizola, em apoio ao presidente João Goulart. Foi solto em 22 de maio “sem entregar ninguém”, garante a filha, com a imagem da passeata da Irmandade de Santo Antônio passando pela rua onde moravam aos berros de “comunistas” ainda bem viva na memória. Das poucas visitas que lhe fez, ela recorda de ir com o corpo forrado de jornais por baixo da roupa para aquecê-lo na cela fria e úmida da delegacia da cidade.
— Ele disse que só dormia se desmaiasse, porque a luz ficava acesa o tempo todo, e que guardas ameaçavam arrancar suas unhas em busca de confissões.
Em 1969, Francisco concorreu à prefeitura pelo MDB, sendo o mais votado. Mas não foi eleito devido ao sistema de sublegenda, no qual um mesmo partido podia ter mais de um candidato e seus votos eram somados. Já convertido em arenista, venceu o pleito seguinte com quase 70% da preferência do eleitorado. Depois de cassado, ele voltou aos seus afazeres cuidando dos doentes, trabalhou na Alesc e se aposentou. Morreu em 1999, um ano após ser indenizado em R$ 15 mil pelo Estado – somente pela prisão. O nome do político batiza um conjunto habitacional na entrada de Laguna.
Tortura e pesadelos noturnos
Em 22 de janeiro de 1969, o futuro médico Roberto Maciel Cascaes foi detido na saída de casa, na travessa Ratcliff, centro de Florianópolis. Seu destino inicial seria a Delegacia de Ordem Pública e Social (Dops) de Santa Catarina, onde durante horas teria que se equilibrar em cima de latas de leite em pó. Sempre que caía, o jovem de 18 anos era brindado com socos pelo corpo e “telefones” (tapas desferidos simultaneamente nas orelhas) para revelar a qual organização revolucionária pertencia, quem a dirigia e o esconderijo da companheira Derlei Catarina De Luca.
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— O que passou, passou, não quero mais mexer nisso — diz ele.
Roberto é vítima de uma das inúmeras histórias de torturas apuradas pelo coletivo Memória, Verdade e Justiça. Sobre o que pretende não mais falar, escreveu no processo em que o Estado lhe indenizou em R$ 25 mil: “As consequências mais sérias são de ordem psicológica e emocional. A prisão, a tortura e a clandestinidade imputara-me sérios abalos psíquicos que me acompanham até os dias atuais.”
Do Dops, os agentes o transferiram para a Penitenciária Estadual e depois para o quartel da Polícia Militar. Após oito dias incomunicável, foi levado para a delegacia em Biguaçu e, dali, à cadeia em Curitiba, seu paradeiro até 31 de março de 1970. Conseguiu concluir o curso de Medicina somente em 1978, mas teve dificuldade em exercer a profissão devido aos “antecedentes criminais” em seu atestado de conduta. Aposentou-se por invalidez em função dos transtornos que lhe foram impingidos. “Ficava arrepiado ao ouvir o barulho de camionetes ou jipes. Os pesadelos noturnos foram uma constante por anos e, às vezes, ainda ocorrem”, anotou.
DOPS acaba com congresso estudantil
O 30 Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) prometia. Em outubro de 1968, delegações de todo o país reuniram-se no sítio Muduru, em Ibiúna (SP), para debater o futuro do movimento ante a repressão que endurecia cada vez mais. Como impunha o pesado clima vigente, foi realizado clandestinamente. Mas mal raiou o dia 12, 215 homens da Força Pública e do Dops invadiram a propriedade e prenderam os cerca de mil participantes antes que o novo presidente da entidade – José Dirceu (aquele mesmo), de São Paulo ou Jean Marc, do Rio de Janeiro – fosse eleito. Muitos universitários ainda dormiam, alguns tomavam café, todos foram surpreendidos pela ofensiva. Entre eles, 15 estudantes de Santa Catarina.
— Imagine um bando de jovens desconhecidos indo ao mercado de uma cidadezinha e comprando enormes quantidades de pão e carne. Não tinha como a polícia não desconfiar de que algo suspeito estava acontecendo — admite o professor aposentado Gerônimo Wanderley Machado, 74 anos, um dos catarinenses detidos.
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Aluno do Direito e da Economia da UFSC, ele partiu com dois colegas de ônibus para São Paulo. Lá, a orientação era cruzar com uma companheira em local e horário pré-determinado, nos arredores da Consolação. Ela seria identificada pelo exemplar da revista Realidade que carregava embaixo do braço. A senha era perguntar à moça quem era o dono do cinema e ouvir como resposta ¿o coveiro da cidade¿. Tudo saiu conforme o planejado e eles foram levados em uma Kombi rumo ao congresso.
No sábado fatídico, Gerônimo acordou com a investida dos policiais. Ninguém esboçou reação. Caminhões com as carrocerias lotadas de estudantes desembarcavam os ¿passageiros¿ no Presídio Tiradentes, na capital paulista. Oito dias depois, chegaram três veículos da marca Rural Willys com dois bancos de madeira e um estofado, enviados pelo secretário de Segurança do Estado, general Rosinha (Paulo Gonçalves Weber da Rosa), para que os catarinenses retornassem ao Estado.
De volta a Florianópolis, Gerônimo estava apenas começando seu calvário. Por conta do histórico no movimento estudantil, ele seria demitido do banco em que trabalhava e perseguido. Aprovado em concurso para professor de Economia em 1972, teve a contratação indeferida por ¿determinação superior¿. No ano seguinte, passou de novo e nem chamado foi. Com uma bolsa do governo francês, mudou-se para Paris para fazer doutorado. No regresso, outro concurso, outra aprovação – e outra negativa. Só nos anos 1980 é que conseguiu, finalmente, ingressar na UFSC:
— Tive que passar três vezes para ser contratado.
Em vez de futebol e metalurgia, interrogatórios
Embora não tenham sido criados para servir de presídio político, a utilização de locais como a Colônia Penal de Canasvieiras, a Escola de Aprendizes de Marinheiros, o Hospital Naval e o quartel da PM (todos em Florianópolis) para essa finalidade não surpreende. Afinal, eram instalações militares. O que espanta é saber que a ditadura não poupou nem lugares onde a violência não deveria ser admitida, como deixam claro os arquivos do coletivo Memória, Verdade e Justiça.
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Há casos, por exemplo, de interrogatórios e prisões realizados em Criciúma no estádio Heriberto Hülse. De acordo com o mineiro Cyro Pacheco, eles eram levados para lá e permaneciam reclusos até que seus depoimentos fossem tomados. Feita a triagem, aqueles considerados perigosos iam parar no prédio do Plano Nacional do Carvão (atual sede da Fundação Cultural da cidade) e no Colégio Estadual Professor Lapagesse. Há relatos de pessoas que ficaram presas por mais de 45 dias, inclusive sob torturas. Em diversos documentos anexados aos processos do acervo, a escola reconhece que cedia salas para inquérito de suspeitos de comunismo.
Vários testemunhos de presos políticos de Joinville também ressaltam a participação da Fundição Tupy no esquema repressivo. A empresa apoiou o regime desde o primeiro momento. Assim que instituído o golpe, a produção foi paralisada e houve discurso saudando os novos tempos que se avizinhavam. Em abril, os funcionários foram dispensados para engrossar a Marcha pela Família com Deus e pela Liberdade. O envolvimento da metalúrgica com o governo militar era tanto que, em suas dependências, havia até uma sala especial para os fardados. Os operários demitidos por participação político-sindical ou reivindicação salarial tinham a carteira de trabalho assinada com caneta vermelha. Era o código entre os empresários para que nunca mais arrumassem emprego na região.