A audiência pública realizada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) na tarde desta segunda-feira (15) para discutir o marco temporal para terras indígenas teve discursos inflamados de parlamentares e produtores rurais em defesa da tese jurídica que terá julgamento retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 7 de junho.

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O encontro foi convocado pelo deputado estadual Mauro de Nadal (MDB), presidente da Alesc, que anunciou, ao fim da audiência, que será levada aos ministros do STF uma carta em favor do marco temporal (entenda abaixo do que a tese se trata), informação já adiantada pela colunista do NSC Total Dagmara Spautz.

Além de deputados estaduais, estiveram presentes representantes do governo Jorginho Mello (PL), dois parlamentares catarinenses do Congresso Nacional, líderes de entidades ruralistas, prefeitos de cidades em Santa Catarina com áreas em disputa e proprietários rurais.

Deputados citam risco de conflitos

Todos os discursos do encontro se deram em favor do marco temporal, inclusive de um único indígena, o advogado Ubiratan de Souza Maia, natural de Roraima, mas morador de Chapecó. A ameaça de eventual conflito caso haja revisão das demarcações também foi comum nas falas.

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— Se isso acontecer, cerca de 30% do território nacional vai passar para a mão dos indígenas. Temos noção do derramamento de sangue que vai ser nesse país, no nosso estado? — disse o deputado estadual Sérgio Guimarães (União Brasil), citando três áreas sob disputa em Palhoça, na Grande Florianópolis.

O senador Jorge Seif (PL) também levantou a hipótese de eventual conflito, relembrando conversa que teve com a então ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP), hoje senadora, em 2020.

— [Eu disse a ela] “Ministra, isso vai dar problema grave, porque, eu não sei nos demais estados da federação, mas, no meu estado, as famílias estão há 200, 300 anos em cima da terra. Se mexermos na segurança jurídica da nossa população, eu temo em dizer para senhora, lamento em dizer, mas eu conheço o povo do meu estado, infelizmente, vai haver conflagração, vai haver conflito” — afirmou Seif.

O senador voltou atrás no tom posteriormente, no entanto, dizendo que “não é para defender briga nem preterir direitos dos nossos indígenas”. Ao longo de sua fala, ele ainda disse temer outras discussões sobre posse de terra no país caso o marco temporal indígena seja refutado no STF, como um hipotético “marco temporal do quilombola” ou “dos animais silvestres”.

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Governo de SC diz atuar em três frentes

O procurador-geral do Estado, Márcio Vicari, disse entender que o marco legal é questão pacificada já por outras ações, como a que tratou da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e que a gestão Jorginho acompanhará o julgamento de Brasília.

Já o secretário da Agricultura, Valdir Colatto, afirmou que o governo catarinense se empenha não só na questão jurídica, mas com articulação política e na esfera administrativa, para viabilizar indenizações da União aos proprietários rurais no caso de o marco ser vetado e haver novas demarcações.

Só em Cunhã Porã e Saudades, cidades no Extremo-Oeste e onde há litígio sobre a Terra Indígena Guarani de Araçáí, as indenizações de 2,7 mil hectares de terra passariam dos R$ 500 milhões, algo inviável de ser pago, segundo ele.

— É claro que os agricultores não querem abandonar suas terras, mas, se isso acontecer, alguém tem que pagar essa conta. Tenho certeza que não tem recurso no Brasil para pagar essa conta — disse Colatto, que também fez alusão à ameaça de conflito por terra.

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— A sociedade inteira tem que saber o que está acontencendo, em mostrar sua contrariedade a um possível desastre que pode acontecer nesse Brasil. A gente já informou a nossa área de segurança. O nosso governador, Jorginho Mello, lá em Chapecó, na sexta-feira [12], fez um pronunciamento forte, dizendo que Santa Catarina vai respeitar o direito de propriedade e dará a segurança jurídica e até policial para os nossos agricultores, sejam nas questões indígenas ou de invasão de movimentos sem-terra.

Prefeitos fazem coro ao marco temporal

Prefeitos de Palhoça e Cunha Porã também falaram durante a audiência em favor do marco temporal. Na plateia, proprietários de áreas sob demarcação das duas cidades puxaram aplausos.

— No último sábado [12], tivemos os festejos de 273 anos de fundação da comunidade de Enseada de Brito. São 273 anos de existência de uma comunidade que agora está ameaçada de ter as famílias despejadas de uma hora para outra, de uma forma arbitrária — disse Eduardo Freccia (PSD), de Palhoça.

— Eu sou de origem italiana, nossa origem maior do Sul é o italiano e o alemão. Fomos convidados por um governo antigamente a colonizar, a vir para cá, nosso descedentes [sic], e pagaram suas propriedades. Esse mesmo governo fala isso, de tirar nosso direito à propriedade. Quatro gerações muitas vezes estão naquele lugar — disse a prefeita de Cunha Porã, Luzia Vacarin (PSDB), que afirmou ainda “nunca ter visto índio por lá”, apesar de o próprio nome da cidade ter origem indígena.

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Líder indígena diz que não foi convidado

Ao NSC Total, o cacique Tucun Gakran, presidente das aldeias que compõem a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, que mobilizou a ação no STF sobre o marco temporal, disse que não foi convidado para a audiência na Alesc.

— Os políticos procuram apenas os não indígenas. Em vez de procurar dialogar com o povo indígena, não, eles estão procurando envenenar mais os colonos. Em vez de conversar, não, eles estão fazendo esse tipo de tumulto, e os colonos, como se diz, estão caindo na conversa deles, dos políticos. Ninguém convida nós, nem deputado, nem vereador, nem prefeito. Ninguém fala com nós sobre isso. Estão fazendo essas audiências aí, falando bobagem para os colonos, envenenando eles contra o povo indígena — afirmou Gakran.

A reportagem questionou a assessoria do presidente da Alesc, Mauro de Nadal, que convocou a audiência, se não houve convite a Gakran ou mesmo a outras lideranças indígenas contrárias ao marco temporal. A assessoria dele sugeriu contato com a comunicação da Alesc, que ainda não retornou.

O que é o marco temporal indígena

O marco temporal indígena se trata de uma tese jurídica que defende que terras indígenas tenham demarcação homologada somente caso já fossem ocupadas ou estivessem sob disputa na data da promulgação da Constituição Federal atual, de 5 de outubro de 1988.

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A constitucionalidade da tese vai ser julgada pelo STF a partir de um ação judicial centrada em Santa Catarina, mobilizada por conta da possível ampliação da terra indígena Ibirama-Laklaño, espalhada por quatro municípios catarinenses do Alto Vale do Itajaí e reivindicada pelo povo Xokleng.

A ampliação da Terra Indígena (TI) é contestada na Justiça por cerca de 300 proprietários rurais e pelo governo catarinense desde 2003, quando o Ministério da Justiça reconheceu a área para demarcação.

Apesar de se debruçar especificamente sobre o território dos Xokleng, a ação tem repercussão geral e, portanto, vai influenciar demarcações em todo o país. Em Santa Catarina, por exemplo, o entendimento do STF terá repercussão sobre terras indígenas reivindicadas por povos guaranis em Palhoça, na Grande Florianópolis, e também nas regiões de Cunha Porã e Saudades, no Extremo-Oeste.

Em oposição à tese sob julgamento, os indígenas afirmam que não teriam como ocupar, à época da assinatura da Constituição, áreas hoje reivindicadas devido a eles terem sido vítimas de histórica perseguição e também serem tutelados por governos àquela altura.

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Já quem é favorável ao marco afirma que ele causaria a remoção de famílias instaladas há até 100 anos em propriedades rurais colonizadas no início do século passado e repassadas por gerações. Atualmente, produtores que ocupam áreas sobre território demarcado não conseguem obter o Cadastro Ambiental Rural (CAR), registro obrigatório para imóveis rurais e que abre possibilidade, por exemplo, para ser reivindicado crédito rural facilitado.

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