Há uma pergunta que todo mundo já fez. Ou fará. Assim como uma resposta que a maioria já deu. Ou dará.

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— O que você vai ser quando crescer?

As respostas a seguir são de duas crianças. Meninos que vivem sob a tensão provocada pela violência na comunidade em que moram.

— Quando crescer, quero ser bandido para matar a polícia — diz o de seis anos.

— Eu quero ser polícia para matar o ladrão — responde o de cinco anos.

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Afinal, o que esses meninos provocados pela reportagem querem dizer?

— Essas crianças estão denunciando que a violência tornou-se um padrão de comportamento banalizado. A ideia básica do menino de seis anos reside no desejo de tornar-se violento para vingar a ação violenta de quem deveria coibir a violência — observa o psicólogo João David Cavallazzi Mendonça.

Especialista em terapia familiar sistêmica, Mendonça alerta que, quando uma criança alimenta no seu imaginário a ideia de tornar-se um adulto que pratica atos de violência, ela dá indícios de que as suas experiências de vida estão impregnadas por atos de violência.

Ideia que remete a um paradoxo: a tentativa de reprimir a violência empregando meios violentos. Um interminável ciclo retroalimentador. Ouvir meninos de cinco ou seis anos relatarem que a violência é a base do plano de vida deles é um alerta:

— Temos que encontrar urgentemente um novo modelo de sociedade em que a violência não seja uma norma naturalizada de conduta, mas uma aberração. Isso vale para pais, educadores, instituições — sugere o psicólogo.

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Essas crianças que expõem em suas respostas a banalização da violência vivem em um território de exclusão, o Morro do Horácio. Nos últimos meses, a comunidade que faz parte do Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis, aparece no noticiário por um viés negativo, o da violência. A situação se agravou em 15 de setembro, quando um policial e um morador foram mortos. A ousadia dos traficantes de drogas e a ação repressora da PM com barreiras e incursões transformaram a região em uma área de risco iminente.

Realidade que espalha medo entre os 3,5 mil moradores. Mais especialmente entre as 700 crianças. Meninos e meninas que têm suas rotinas atravessadas, com familiares envolvidos ou não com o crime. Embora isso não justificasse os relatos: acordam à noite com gritos de policiais, com portas sendo arrombadas, com eletrodomésticos quebrados, com adultos sendo retirados, levados para a rua, espancados. Protagonistas de uma infância que viu substituído o medo do ladrão pelo da polícia, do escuro pelo andar na rua, da injeção pelo da bala perdida.

Mas como as crianças percebem essa violência?

Quando se busca a resposta, ouve-se uma palavra: paredão. A expressão que vem dos tempos em que as pessoas eram expostas em um muro para ser fuziladas está na boca das crianças. Todas viram ou ouviram alguém falar sobre familiares submetidos a revistas constrangedoras. Homens ou mulheres. Trabalhadores, com moradia fixa, sem passagem policial.

São as crianças quem mais revelam o limite de estar entre criminosos e polícia. Existe uma desconfiança de que a qualquer momento algo possa acontecer, de que uma provocação seja revidada, de que o sentimento de vingança pelas mortes, em ambos os lados, deflagre novos confrontos. O medo salta aos olhos quando o helicóptero da PM se aproxima das casas. Nenhum abano aos policiais que empunham armas, que observam com binóculos as servidões e moradias. Tiros nem precisam ser disparados. Somente o barulho ensurdecedor do vaivém da aeronave de um lado para o outro deixa as crianças acuadas.

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São elas também que sentem os limites impostos pela presença dos criminosos. Em períodos de forte tensão, são obrigadas a ficar em casa. Nesses dias, aulas são suspensas, voluntários não aparecem, serviços de saúde são cancelados. O lixo deixa de ser recolhido, o ônibus não chega ao ponto final e táxi não sobe. Por questão de segurança, os pais impedem brincadeiras nas ruas e que as crianças se sentem nas calçadas. Só a cabeça fora do portão. Resta a elas atravessar a fronteira do imaginário. E pensar em um paredão diferente do que conhecem. Onde caibam sonhos.

Um episódio violento a cada três meses

Neste ano, as crianças do Morro do Horácio conviveram com três episódios de muita violência. O mais recente é o da morte do PM Vinícius Alexandre Gonçalves, 31 anos. Lucas Luiz Martines Almeida, 22 anos, foi morto durante as buscas pelo suspeito de atirar contra o policial. Outro homem, André Luiz de Oliveira, 21 anos, foi baleado.

Em 16 de fevereiro, um assalto a um carro-forte na Avenida Beira-Mar colocou o Morro do Horácio no foco da polícia. Dois homens morreram, sendo um assaltante e outro que trabalhava na escolta do veículo. Outros criminosos envolvidos fugiram para os altos do Morro do Horácio, o que desencadeou incursões ao local.

Um pouco depois, em 22 de março, outro susto, ainda que não tenha sido um crime: encerrada as aulas e às vésperas do feriadão do aniversário de Florianópolis, quatro mulheres e uma criança sofreram um grave acidente de trânsito. O carro dirigido por uma professora perdeu o freio no asfalto íngreme e desceu ladeira abaixo, atingindo pessoas que estavam no ponto de ônibus, incluindo educadores, uma moradora e o neto dela. A proximidade com pessoas tão queridas, como as professoras, deixou as crianças bastante preocupadas. Até agora, duas profissionais permanecem em licença-saúde.

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Doces e afeto para diminuir a angústia

Choro, irritação, brigas, dificuldade de concentração. Assim os alunos da Escola Desdobrada Osvaldo Galupo reagem ao cenário da violência. O colégio tem 140 alunos da educação infantil e ensino fundamental com idade de dois a 15 anos. São 32 profissionais que trabalham lá. O lugar é um espaço de convivência para a comunidade, que tem boa estrutura e bonitas instalações para diferentes atividades. Inserido no programa Escola Aberta, é palco de oficinas, festas, ponto de encontro. É também onde desaguam angústias.

— Não tem como ficar imune a situações de maior tensão. De uma forma ou de outra, todos sentem o impacto do que acontece ao redor — observa a diretora Nicole da Silva Freitas Alves.

Cientes dessa realidade, os educadores buscam tornar o cotidiano dos alunos mais leve. Uma vez por mês é realizada a festa dos aniversariantes. Momento de cantar parabéns, comer bolo e compartilhar afeto.

— A questão afetiva é crucial. A gente sente o quanto as crianças precisam de atenção. Temos um currículo a seguir e procuramos incluir temas ligados a identidade deles — conta Nicole.

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Um dos exemplos nem todo mundo conhece. É o nome da escola, uma homenagem a um menino que queria construir um galinheiro. É a única instituição da rede pública de Florianópolis que leva o nome de uma criança. Foram os próprios estudantes que, estimulados pelas professoras, resgataram a história que está contada em uma cartilha.

Para a narrativa, os estudantes fizeram uma pesquisa junto aos moradores, participaram de uma produção coletiva de textos, montaram maquetes e fotografias. O projeto foi desenvolvido em 2013 por alunos do terceiro ano e sob a coordenação das professoras Rosane Maria Kreuch e Terezinha de Jesus Bernardino. O livro esclarece equívocos a respeito da morte do menino, em 15 de outubro de 1980, quando ele tinha 14 anos.

Os detalhes foram elucidados pelos familiares que concederam entrevistas aos estudantes. Diferentemente do que era contado, Osvaldo foi vítima de uma descarga elétrica quando cortava bambus, e não quando soltava pipa, como era dito.

Muitos alunos da escola têm origem parecida com a de Osvaldo Galupo. A família dele morava no interior de Anita Garibaldi, na Serra catarinense, e veio para Florianópolis em busca de uma vida melhor. Na Capital, Osvaldo começou a trabalhar numa feira que ficava próxima ao Beiramar Shopping. O menino ajudava as senhoras a carregar as sacolas até a casa delas. Com o dinheiro que ganhava, Osvaldo decidiu comprar algumas galinhas. Acostumados à vida no interior, os pais, João Galupo e Vilma Colombo Galupo, gostaram da ideia. Porém, era preciso construir um galinheiro. Para isso, com o irmão Caio, Osvaldo acordou cedo para cortar bambus numa mata na subida do Morro da Cruz.

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De repente, um bambu ficou preso em alguma coisa: um fio de eletricidade. Osvaldo passou o facão para Caio terminar de cortar a planta, enquanto ele puxava o bambu. Caio sentiu um choque muito forte. O impacto foi tão grande que o jogou para longe. Quando acordou do desmaio, percebeu que Osvaldo também havia recebido uma descarga. Caio correu para buscar ajuda. Mas já era tarde: o menino estava morto. Osvaldo era irmão de Pedro, Sueli, Adelmo, Ivonete, Sirlei, João Carlos e Clemir. Alguns dos familiares permanecem na comunidade, o que faz com que o sobrenome Galupo esteja presente na lista de alunos da escola. Faz 36 anos que a tragédia ocorreu. O fato foi registrado na página 6 do jornal O Estado de 16 de outubro de 1980. A nota “Descarga fatal” está espremida entre outras na coluna Ronda. Ocorrida há quase quatro décadas, o incidente mostra o quanto as vidas da crianças da periferia parecem valer menos nas páginas dos jornais.

Dias tensos, noites em claro

O aumento da violência se refletiu no bem-estar dos moradores do Morro do Horário. Quadros de ansiedade, estresse e insônia podem ser verificados no Posto de Saúde da Agronômica. A unidade tem uma equipe para atender à comunidade. Nos dias seguintes às mortes, metade das 25 consultas diárias tinham esses transtornos como diagnóstico. Mesmo pacientes com outros problemas de saúde falavam no assunto. O médico João Paulo Garibaldi, especialista em família e comunidade, explica que os sintomas são identificados independentemente do sexo ou da faixa etária.

— Por ser médico da família, atendo crianças, idosos, gestantes. Existem pessoas que não dormem por medo dos tiros ou das casas serem invadidas. Elas estão sob tensão constante.

O trabalho da equipe, que inclui visita domiciliar a pacientes que não podem sair de casa, está suspenso no Horácio. Agentes de saúde repassam informações sobre a possibilidade de confrontos e por questão de segurança os profissionais não sobem.

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O acesso ao Horácio se faz pela Rua Antônio Carlos Ferreira. Nascida no pé do asfalto, sob uma brisa encanada de prédios de alto padrão das cercanias da Avenida Beira-Mar Norte, finda lá no alto, numa bifurcação a caminho do Morro da Cruz. Trajeto movimentado, íngreme, e em dias de chuva, escorregadio.

Por essa rua passa a linha do ônibus 768. Cerca de seis quilômetros após deixar o Terminal de Integração do Centro (Ticen), chega ao destino. Viagem pequena, 25 minutos, tempo de ouvir mães e avós preocupados.

Sentada perto da janela, uma mulher responde a uma conversa sobre a tensão dos últimos dias. Diz que já viveu muito — 62 anos —, mas teme pela vida das filhas, dos genros e dos netos.

— Minha família graças a Deus não mexe com essas coisas (drogas). Mas a casa do meu cunhado foi revirada e até o celular da menina de 10 anos foi quebrado. Está uma revolta só — diz.

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Bem próximo, uma mulher mais jovem entra na conversa. O sotaque parece nordestino.

— Eu não me importo de ver a polícia no morro, mas acho que deviam tratar bem as pessoas e dar bom exemplo. As crianças estão vendo tudo isso — diz.

Um senhor de cabelos grisalhos fala:

— A gente que tem jovens na família perde o sono. Minha senhora até remédio teve que tomar, pois depois do tiroteio (morte do PM) ficou quatro noites sem dormir, de tão nervosa.

Entre a ordem e os direitos

As reclamações dos moradores sobre supostos excessos dos policiais forçaram uma reunião na Corregedoria Geral da PM. Em 23 de setembro, um grupo formado por lideranças da comunidade e representates de entidades de defesa dos direitos humanos foi conversar com o corregedor José Aroldo Schlichting. Ele ouviu as queixas, fez ponderações e assumiu o compromisso de rodízio de patrulhas, presença de policial feminina e substituição dos policiais que estavam na noite da morte do colega Vinícius Alexandre Gonçalves.

Nesta sexta-feira, o tenente-coronel Marcelo Pontes, comandante do 4o BPM, informou que a presença da Polícia vai continuar.

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– A nossa presença impede o tráfico de drogas, mas temos o compromisso de fazer uma atuação mais comunitária.Nesta segunda-feira, tem início na Escola Desdobrada Osvaldo Galupo o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd).

Babyton Santos é diretor da União Florianopolitana das Entidades Comunitárias (Ufeco) no Maciço do Morro da Cruz. Ele critica o fato de que, com exceção da presença policial, o Estado se faz ausente nas periferias e isso se reflete no cotidiano das comunidades.

Danilo Novais é vice-presidente da Associação de Moradores do Morro do Horário. Sobre iniciativas como a do Proerd, acredita que exigirá uma mudança de comportamento da corporação:

— As nossas crianças não têm uma boa imagem dos policiais. Eles que vão ter que aprender a trabalhar o lado social.

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Daniela Felix, advogada integrante do Coletivo Catarina de Advocacia Popular acompanha de perto a situação. Na visão dela, o policiamento ostensivo em período de vigilância integral significa para a comunidade uma violência simbólica. Ela informa que o tráfico nas periferias e nos morros representa cerca de 2% da população local. Por isso, questiona a presença da PM.

— Se considerarmos que o Morro do Horácio tem cerca de 3 mil habitantes, 2% representam 60 pessoas. Com todo o aparato tecnológico, de pessoal e instrumental, será que a polícia não tem identificados esses sujeitos?

Conforme Daniela, nos dias seguintes às mortes, os moradores relataram situações complexas que vivenciaram, como as revistas pessoais:

— Até crianças e pessoas com deficiência passaram por esse constrangimento, que são graves violações dos direitos humanos.

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O corregedor Schlichting pediu a formalidade de provas, mas prometeu averiguar se estava ocorrendo excessos nas abordagens. Desde então, tenta-se montar um dossiê junto às pessoas que tiveram seus direitos violados. Mas o sentimento é que elas ainda permanecem acuadas.

— Não iremos forçar essa produção probatória, pois podemos colocar essas pessoas em situações de riscos. Eles moram lá, nós não.

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