O escritor alagoano, Graciliano Ramos (1892-1953), é um autêntico “gênio da raça”, como se diz popularmente. Coincidindo com os sessenta anos de sua morte, enaltecido pelo público e pela crítica como um dos maiores romancistas brasileiros, tem sua conturbada biografia pela primeira vez transposta para o cinema no docudrama O Universo Graciliano, de Sylvio Back.

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Uma abordagem existencial com fundo moral e político, dentro de uma linguagem instigante que mescla memória, história e obra, o filme procura desvendar a alma do criador e suas múltiplas criaturas. A estreia nacional do filme ocorre no Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente nos próximos dias 07 e 11 de abril, dentro da programação dos títulos em competição do Festival Internacional É Tudo Verdade, considerado o maior da América Latina. Back escreve ao Cultura sobre a produção, como você poderá ler nas páginas centrais.

Graciliano Ramos é uma esfinge

Por Sylvio Back *

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Todo filme engendra sua própria história. Como se fosse uma espécie de second life permeando o próprio roteiro e as filmagens, e aquilo que, selecionado e montado, irá faiscar na tela. Com O Universo Graciliano, sem premeditação alguma, as crônicas que precederam e presidiram as pesquisas literárias, de campo e as entrevistas, trazem à tona um Graciliano Ramos que extrapola qualquer tentativa reducionista. Simplesmente, porque se trata de persona assumida, tanto por ele em vida, como pelo seu tempo e contemporâneos, como pela posteridade.

Cada depoimento embute tal volume de emoção, comoção e estranhamento, que os retratos falados, revelações e inconfidências detonam falácias e mitos que por décadas balizam vida-e-obra do escritor. São atos & fatos surpreendentes em torno de seu temperamento tanto irônico e carrancudo, quanto sedutor e às vezes, até misantropo. Soberbos contornos redivivos em que memória e amnésia se revezam, homenageando a argúcia de quem lhes bebe a verdade poética.

Uma invisibilidade em que o passado é o que a mente de cada um captura e reescreve a seu bel prazer. É truísmo que o filme da mente não mente jamais! Como e quando tudo começou? Em que momento Graciliano Ramos teria me conflagrado a ponto de hoje eu assinar este resgate existencial, por todas as razões, inescapável da minha própria biografia? Sim, antes de cineasta, eu sonhava ser escritor. Na verdade, como anunciavam os diretores-inventores da Nouvelle Vague (Jean-Luc Godard, Louis Malle, Claude Chabrol, François Truffaut), ao longo dos anos 1950, cineasta seria alguém que “escreve com a câmara” (caméra-stylo (caneta). No fundo, a fada madrinha do cinema já estava de olho em mim!

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Naquela época eu morava em Paranaguá, Litoral do Paraná, onde a família tinha um hotel (não é à toa que Aleluia, Gretchen, meu terceiro longa-metragem, de 1976, se passa num hotel…). E, como se estivesse escrito, ora direis, a única livraria da cidade expôs na vitrina os quatro volumes, com capa dura cor de vinho, o também único conjunto da obra póstuma (1954) de Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere. Minha mãe, inveterada leitora, curtindo meu desejo literário, foi lá e, de surpresa, com aquele belo sorriso do gozo intelectual, me presenteou o inesquecível acepipe. Desde então, Graciliano grudou na memória, na retina e nos fotogramas.

Agora, fico ruminando o que aquela alemoa apaixonada pelo Brasil diria vendo esta minha declaração de amor e destemor em O Universo Graciliano ao controverso escritor alagoano, tão telúrico quanto universal! A sensação de incompletude é recorrente em todo autor, em especial, quando o projeto se defronta com multifacética personalidade moral, afetiva, intelectual e política como a de Graciliano Ramos. Do “nascimento” como romancista (“Caetés”) e homem público (prefeito de Palmeira dos Índios entre 1928 e 1930), à sua inusitada prisão em Maceió, deportação e prisão em 1936, a permanência e morte no Rio de Janeiro, seu cotidiano é marcado por tragédias e polêmicas. Parecia ser uma espécie de dublê fake de si mesmo.

Talvez o meu filme consiga transmitir esse sentimento que foi me envolvendo já quando estudava a obra e relatos sobre o autor, até a oitiva de uma vintena de pessoas, direta ou indiretamente, vinculada a ele. E isso fica nítido ao se ouvir quem o frequentou durante décadas como pessoa, ou, por osmose, quem tenha se apaixonado pelos personagens seminais de São Bernardo, Angústia e Vidas Secas.

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Em O Universo Graciliano é por essa senda que o filme se imiscui, articulando preciosa iconografia fixa e em movimento, música de compositores alagoanos, na tentativa de vasculhar rastros, sombras e escombros memoriais, onde verdades e mentiras se embaralham, sobre a maior esfinge da literatura brasileira.

* Cineasta, poeta e escritor, autor de 38 filmes (12 longas-metragens) e de 21 livros (roteiros, poesia e ensaios).