No início de 1975, o jesuíta espanhol José Luis Caravias sentia- se mais protegido com o entra e sai da residência coletiva na faculdade de teologia, em San Miguel, na grande Buenos Aires, do que em um esconderijo. Mas a movimentação na casa ampla não era suficiente, e Caravias tinha motivos para estar com medo no período que antecedeu o golpe militar no país, em março de 1976. Ele estava marcado para morrer.

Continua depois da publicidade

Quem o avisara fora o superior provincial dos jesuítas na Argentina, Jorge Mario Bergoglio, hoje, papa Francisco.

O grupo paramilitar Triple A (Aliança Anticomunista Argentina) perseguia líderes de organizações populares como Caravias, que trabalhava em favelas da capital argentina. Dois sacerdotes amigos seus haviam sido torturados e mortos misteriosamente: Carlos Mugica e Maurício Silva. Ainda assim, Caravias arriscava- se a deixar a casa e fazer incursões pelas vilas.

O espanhol integraria a lista negra da Triple A, assim como o húngaro Francisco Jalics – colegas na ordem jesuíta. Bergoglio os procurou e pediu que ambos deixassem o país.

Caravias aceitou ajuda e viajou à Espanha. Jalics, porém, “se fez de valente”, e quase morreu, conta o religioso que mora na paróquia Cristo Rei, em Assunção, Paraguai, e é autor de dezenas de livros ligados à área social.

Continua depois da publicidade

Nos últimos dias, o padre se revoltou quando soube das acusações do jornalista Horacio Verbitsky, escritas no livro O Silêncio, de 2005, e que, agora, com a eleição do Papa, foram revitalizadas no jornal Página 12 e repicadas por organizações de direitos humanos. Verbitsky preside o Centro de Estudos Legais e Sociais, organismo que investiga crimes da ditadura, e investigou as relações secretas entre as autoridades da Igreja e a Escola Mecânica da Armada, utilizada como centro de repressão.

Segundo o jornalista, Bergoglio teria “delatado” Jalics e o argentino Orlando Yorio, também sequestrado em 1976 e liberado meses depois. Pelas afirmações, Bergoglio, no mínimo, não teria feito o que estava a seu alcance para impedir o sequestro dos sacerdotes.

Colega de Caravias disse ter revisto posição sobre crime

O caso fez com que o ativista argentino e Nobel da Paz em 1980, Adolfo Pérez Esquivel, saísse em defesa do Papa, e que Jalics interrompesse seu retiro na Baviera para se manifestar em favor do Pontífice.” Antes eu me inclinava pela ideia de que havíamos sido vítimas de uma denúncia, mas ao final dos anos 1990, depois de numerosas conversas, me convenci de que essa suposição era infundada”, escreveu Jalics em carta.

Jalics disse ter se reconciliado com Bergoglio. O próprio Bergoglio, em 2010, em uma audiência, declarou ter advertido aos dois sacerdotes sobre os perigos e de ter tentado interceder por eles, mas sem êxito.

Continua depois da publicidade

Diferenças com o superior

Ontem, por telefone de Assunção, o religioso disse a Zero Hora que considera uma “calúnia” as acusações de que Bergoglio teria colaborado com torturadores: Ontem, Caravias divulgou um texto contando sua história. Descreve diferenças com Bergoglio, mas atribui a ele o fato de estar vivo.” Que pensava Bergoglio de tudo isso? Me incentivou a fugir. Creio que se sentiu aliviado quando fui embora. Seguramente, não estava totalmente de acordo com as minhas ações organizativas entre o povo. Talvez tantos informes policiais o fizeram duvidar, mas comigo foi nobre e me ajudou a escapar de uma morte certa …”, escreveu. O espanhol sugere que Bergoglio não tinha uma atuação tão próxima do povo, mas que, passado aquele momento que” enlouqueceu a todos”, aproximou- se do povo e passou a ter” ideias mais claras”.

Entrevista

Zero Hora – Como o senhor conheceu Bergoglio?

José Luiz Caravias – Eu trabalhava no Chaco argentino, onde ajudei a formar ligas agrárias. Fui perseguido lá e decidi me mudar para Buenos Aires, onde comecei a atuar em vilas pobres. Bergoglio era o provincial dos jesuítas em Buenos Aires e atuamos juntos. Bergoglio, no entanto, não tinha uma atuação forte naquele momento nas vilas e por isso não era perseguido.

ZH – O que Bergoglio fez naquele momento?

Caravias – A situação eram muito difícil. Dois sacerdotes amigos meus tinham sido mortos (Carlos Mugica e Mauricio Silva). Bergoglio me alertou que eu estava na mesma lista dos meus amigos que tinham sido mortos e que deveriam ir embora. Nos encontrávamos discretamente, na casa provincial e também em outros lugares, e pensávamos no que iríamos fazer.

ZH – O que ele dizia?

Caravias – Ele sempre foi muito amável, carinhoso. Ele dizia que não valia a pena morrer. Se opor à ditadura naquele momento era jogar pela vida. Estou vivo graças a ele.

Continua depois da publicidade

ZH – O que vocês decidiram?

Caravias – Passamos uma temporada pensando, não foi uma decisão improvisada. Concluímos que eu deveria ir para a Espanha. Bergoglio me deu permissão para ir e me ajudou a comprar a passagem. A ideia era que eu retornasse em um mês, mas a ditadura só piorou. Quando eu estava na Espanha, Jorge Bergoglio me avisou para que não voltasse à Argentina que o clima estava ainda mais pesado. Então, fui para o Equador trabalhar com indígenas. Soube depois que pessoas que conheço foram torturadas em busca de informações. Foram brutalmente torturadas. Bergoglio me disse que a Triple A havia decretado a morte de sacerdotes. Eu estava na mesma lista que Jalics. O movimento paramilitar era muito cruel. Ele também convidou Jalics a sair, mas Jalics decidiu ficar.

ZH – Vocês voltaram a se falar?

Caravias – Não, desde que voltei a morar no Paraguai (em 1989), nunca mais nos encontramos.

ZH – Por que surgem denúncias de que Bergoglio teria, na verdade, colaborado com a ditadura argentina?

Caravias – É tudo mentira, calúnia. A alguém não interessa um papa austero, querem lhe desprestigiar.