*Por Julie Turkewitz e Manuela Andreoni

O vírus corre pela região como pragas passadas, que viajaram pelo rio com colonizadores e corporações.

Continua depois da publicidade

Espalhou-se com as canoas que transportam famílias de cidade em cidade, os botes de pesca com motores barulhentos, as balsas que levam mercadorias por centenas de quilômetros, repletas de passageiros dormindo em redes, um ao lado do outro, durante dias.

O Rio Amazonas é uma fonte de vida essencial da América do Sul, uma superestrada que corta o continente. É a artéria central de uma vasta rede de afluentes que sustenta cerca de 30 milhões de pessoas em oito países, transportando suprimentos, pessoas e trabalho pelas profundezas de regiões florestadas, onde muitas vezes as estradas inexistem.

Mas, mais uma vez, em um eco doloroso da história, também está trazendo a doença.

Continua depois da publicidade

À medida que a pandemia ataca o Brasil, o vírus cobra um preço excepcionalmente alto das pessoas na região amazônica, que dependem de sua abundância há gerações.

No Brasil, as seis cidades com maior exposição ao coronavírus ficam todas à beira do Rio Amazonas, de acordo com um novo estudo amplo, feito por pesquisadores brasileiros, que mediu os anticorpos na população.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

A epidemia se espalhou tão rápida e completamente ao longo do rio que, em comunidades remotas de pesca e agricultura como Tefé, a população é tão propensa a contrair o vírus quanto em Nova York, lar de um dos piores surtos do mundo.

“Foi tudo muito rápido”, disse Isabel Delgado, de 34 anos, cujo pai, Felicindo, morreu de Covid pouco depois de adoecer na pequena cidade de Coari. Ele nasceu à beira do rio e lá criou sua família, e ganhava a vida fazendo móveis com a madeira de suas margens.

Continua depois da publicidade

Nos últimos quatro meses, à medida que a epidemia viajava da maior cidade da Amazônia brasileira, Manaus, com seus prédios e fábricas, para pequenas e aparentemente isoladas aldeias no interior, o frágil sistema de saúde colapsou. Cidades e vilarejos ao longo do rio têm algumas das maiores mortes per capita do país – várias vezes a média nacional.

O vírus está afetando de modo desproporcional os povos indígenas, um paralelo com o passado. Desde 1500, ondas de exploradores percorreram o rio, buscando ouro e terra, e tentando converter os nativos. Mais tarde, voltaram para extrair a borracha, um recurso que ajudou a alimentar a Revolução Industrial, mudando o mundo. Esses forasteiros levaram para a região violência e doenças como varíola e sarampo, matando milhões e exterminando comunidades inteiras.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

“Este é um lugar que gerou tanta riqueza para os outros, e veja o que está acontecendo com ele”, disse Charles C. Mann, jornalista que escreveu extensivamente sobre a história das Américas.

Os indígenas têm cerca de seis vezes mais chances de ser infectados pelo coronavírus do que os brancos, segundo o estudo brasileiro, e estão morrendo em aldeias ribeirinhas distantes, intocadas pela eletricidade.

Continua depois da publicidade

Mesmo nos melhores tempos, a Amazônia estava entre as áreas mais negligenciadas do país, um lugar onde a mão do governo pode parecer distante, até mesmo inexistente.

Mas a capacidade da região de enfrentar o vírus está ainda mais enfraquecida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, cujas atitudes públicas menosprezando a epidemia têm se aproximado, às vezes, do escárnio, embora ele mesmo tenha recebido resultado positivo para a Covid-19.

O vírus surgiu em seu governo desorganizado e sem brilho, espalhando-se pela nação. Desde seus primeiros dias no cargo, Bolsonaro deixou claro que proteger o bem-estar das comunidades indígenas não era sua prioridade, cortando seus financiamentos, reduzindo suas proteções e incentivando invasões ilegais em seu território.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

Para quem vê de fora, a região coberta pela floresta densa ao longo do Rio Amazonas parece impenetrável, desconectada do resto do mundo.

Continua depois da publicidade

Mas esse isolamento é enganoso, segundo a brasileira Tatiana Schor, professora de geografia que vive à beira de um dos afluentes do rio: “Não existem comunidades isoladas na Amazônia, e o vírus provou isso.”

Os barcos dos quais quase todos dependem, às vezes lotados com mais de 100 passageiros por muitos dias, estão por trás da propagação do vírus, de acordo com os pesquisadores. E mesmo que os governos locais tenham oficialmente limitado as viagens, as pessoas continuaram a fazê-lo, porque quase tudo – comida, remédios, até mesmo a viagem para a capital para pegar a ajuda emergencial – depende do rio.

Estudiosos há muito se referem à vida na Amazônia como uma “maneira anfíbia de ser”.

A crise nessa região brasileira começou em Manaus, cidade de 2,2 milhões de habitantes que surge em meio à floresta como uma erupção de concreto e vidro, e que é cercada por inúmeras casas de madeira empoleiradas em palafitas, bem acima da água.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

Manaus, capital do estado do Amazonas, é hoje uma potência industrial, uma grande produtora de motocicletas, com muitos negócios estrangeiros. Está intimamente ligada ao resto do mundo – seu aeroporto internacional vê passar cerca de 250 mil passageiros por mês – e, através dos rios, a grande parte da região amazônica.

Continua depois da publicidade

O primeiro caso de Covid-19 documentado em Manaus, confirmado em 13 de março, veio da Inglaterra. O paciente apresentava sintomas leves e estava em quarentena em casa, em uma parte mais rica da cidade, de acordo com as autoridades de saúde da cidade.

Logo, porém, o vírus parecia estar em toda parte.

“Não tínhamos mais leitos – nem mesmo poltronas. As pessoas não paravam de vir”, disse o dr. Álvaro Queiroz, de 26 anos, sobre os dias em que o hospital público em que ele trabalha, em Manaus, estava completamente lotado.

Gertrude Ferreira dos Santos morava no extremo leste da cidade, em um bairro cercado pela água. Ela costumava dizer que o que mais gostava de fazer no mundo era viajar de barco pelo rio.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

Então, em maio, Santos, de 54 anos, adoeceu. Dias depois, de cama, ela chamou seus filhos, fazendo-os prometer que ficariam juntos.

Continua depois da publicidade

Eduany, de 22 anos, sua filha mais nova, ficou com ela naquela noite. No início da manhã, quando Eduany se levantou para fazer uma pausa, sua irmã Elen, de 28, a chamou.

Sua mãe parara de respirar. As irmãs, em desespero, tentaram ressuscitação boca a boca. Às seis da manhã, com o sol nascendo sobre a cidade, Santos morreu nos braços das filhas.

Em Tefé, cidade de 60 mil pessoas, o vírus chegou com força total.

No pequeno hospital público, onde os funcionários inicialmente planejavam acomodar 12 pacientes, cerca de 50 lotaram a unidade improvisada de Covid-19. Laura Crivellari, de 31 anos, a única especialista em doenças infecciosas do hospital, os acolheu, fazendo o que podia com dois ventiladores pulmonares, sem unidade de terapia intensiva e com muitos colegas doentes – e ninguém para substituí-los.

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

Em um dos piores momentos, ela era a única médica de plantão durante dois dias, supervisionando dezenas de pacientes em estado crítico.

Continua depois da publicidade

A morte constante quase enlouqueceu Crivellari. Em determinados dias, ela mal parava para comer ou beber.

Em casa, compartilhava sua angústia com seu parceiro. Disse a ele que estava pensando em desistir da medicina. “Não posso continuar assim”, ela lhe confessou.

A pandemia tem sido brutal para os trabalhadores médicos em todo o mundo, e particularmente difícil para os médicos e enfermeiros que navegam grandes distâncias, vivem cortes frequentes de comunicação e escassez profunda de suprimentos por toda a Amazônia.

Sem treinamento ou equipamento adequado, muitas enfermeiras e médicos ao longo do rio morreram. Outros infectaram sua família.

Continua depois da publicidade

amazonia
(Foto: Tyler Hicks / The New York Times)

Crivellari sabia que sua cidade era vulnerável. São três dias de barco entre Manaus e Tefé, com balsas muitas vezes transportando 150 pessoas por vez. “Nosso medo era que uma pessoa infectada contaminasse todo o barco, e foi isso que acabou acontecendo”, afirmou.

No início de julho, as mortes diárias em Tefé estavam caindo, e Crivellari começou a comemorar o fato de ter conseguido salvar alguns pacientes. Ela não pensa mais em largar a medicina.

Tefé, como um todo, foi coletivamente cautelosa. 

O vírus, pelo menos por enquanto, seguiu para um novo lugar à beira do rio.

The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.