Ana Lúcia Machado trabalha com uma turma de segundo ano, com 25 crianças: quatro vezes por semana, professora e alunos se encontram – não presencialmente, mas online. Nas aulas remotas, Ana trabalha leituras de histórias, desafios lógicos, interpretação de situações-problema; faz brincadeiras, exibe curtas de animação, usa músicas, poemas. Há também bastante foco na produção das próprias crianças.

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– Trabalho focando na ampliação de seus repertórios, e com categorias como inclusão, autoria e empoderamento – Ana relata. – Há necessidade de não deixar os encontros enfadonhos.

Como tantos educadores ao redor do planeta, Ana foi especialmente desafiada nos últimos meses: depois de trabalhar na rede municipal de ensino de Florianópolis por 32 anos, a então aposentada decidiu retomar o trabalho como professora substituta no Colégio de Aplicação, onde permanece até meados do ano que vem. A retomada se deu em meio à pandemia de coronavírus – ou seja, ao voltar a trabalhar, a professora se viu tendo que reinventar as aulas para o formato remoto.

– Durante quinze anos eu também trabalhei no ensino superior, na modalidade de ensino à distância – ela conta. – Então tenho uma formação que me levou a dominar algumas questões relativas ao ensino remoto. Mas sempre com adultos: essa é a primeira vez em que trabalho o ensino remoto com crianças.

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O Colégio de Aplicação conseguiu, segundo Ana Lúcia Machado, garantir computadores e conexão de internet para aquelas famílias que não contavam com esses recursos – mas é importante destacar que esse movimento está longe de ser a regra. Segundo o professor Fernando Rodrigues de Oliveira, da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), as escolas que conseguiram manter aulas síncronas (ou seja, com alunos e professores interagindo ao vivo uns com os outros) com regularidade foram minoria.

– O principal recurso utilizado por grande parte dos professores para a manutenção das atividades escolares em meio à pandemia foi o compartilhamento de tarefas de forma assíncrona, uma vez que a garantia de conectividade à internet e o acesso a equipamentos não é uma realidade para a maioria dos estudantes brasileiros – aponta. – Dentre as formas de trabalho mais frequentes, tem-se o envio de materiais via WhatsApp, como roteiros de estudo, vídeos ou áudios com o propósito de explicação dos conteúdos abordados, vídeos de contação ou leitura de histórias, e orientações para realização de tarefas disponibilizadas por meio de livros didáticos ou materiais produzidos pelas redes de ensino.

Fernando foi um dos palestrantes no 5º Congresso Brasileiro de Alfabetização (Conbalf), que aconteceu de forma totalmente online na última semana. O evento é organizado pela Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf), em parceria com vinte universidades de todas as regiões do Brasil. A Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) foi a anfitriã desta edição; que teve como tema “Alfabetização: políticas, práticas e resistências”. Os outros especialistas ouvidos nesta reportagem também participaram do congresso.

Os estudantes que tem acesso a equipamentos que permitem o acompanhamento de aulas online são minoria no Brasil
Os estudantes que tem acesso a equipamentos que permitem o acompanhamento de aulas online são minoria no Brasil (Foto: Unsplash)

– Importante ressaltar que o “malabarismo” feito pelos professores se deu, na maioria dos casos, sem apoio da gestão das redes de ensino – prossegue o professor, ainda sobre as dificuldades enfrentadas pelos profissionais em relação ao ensino remoto. – A ausência de políticas públicas efetivas significou depositar a responsabilidade do ensino remoto sobre esses profissionais: coube aos professores providenciar, por conta própria, equipamentos que dessem conta do volume de trabalho, internet banda larga que atendesse às demandas de atendimento, a criação de estratégias de “recuperação” do contato com crianças e famílias, e buscar formação necessária para operar tecnologias que nem sempre eram de conhecimento ou domínio de todos.

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– A despeito das visões excessivamente positivas sobre os “novos horizontes” educacionais que o ensino remoto pode nos trazer, é preciso pensar sobre o abismo que essa modalidade educacional ampliou entre realidades que já eram profundamente díspares – Fernando destaca. – A ideia de maior aproximação entre tecnologias digitais e ensino não se deu da mesma forma nem nas mesmas condições para a maiorias dos profissionais da educação e estudantes. Acreditar que a pandemia acelerou esse processo é, no mínimo, fechar os olhos para as desigualdades sociais e educacionais que foram agravadas no contexto da pandemia.

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Tecnologia faz falta; interação humana, também

As desigualdades sociais e educacionais estão entre os principais empecilhos ao pleno aproveitamento do ensino na modalidade remota, conforme constatado por levantamentos feitos no Brasil e no exterior. Em junho de 2020, por exemplo, foi criada a Alfabetização em Rede, estudo envolvendo mais de 100 pesquisadores da área de alfabetização de 29 universidades em 18 estados de todas as regiões do país. O objetivo era acompanhar o ensino remoto da alfabetização. 14.735 professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental responderam ao questionário online.

– Os dados indicam que o ensino da alfabetização nas escolas públicas tem se dado predominantemente pelo uso do WhatsApp – diz a professora Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo, da UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei), que coordenou o levantamento. – O aplicativo é considerado a forma mais rápida e eficaz de comunicação da escola com as famílias, pelo baixo custo e acessibilidade às camadas populares. Nota-se a precariedade do ensino ofertado, uma vez que os alunos não interagem em tempo real com as docentes; a maior parte das interações ocorre de forma assíncrona; e cerca de 20% dos alunos não têm acesso nem mesmo ao WhatsApp.

A professora explica como se dá o ensino de alguns alunos que não têm acesso à internet – muitos deles residentes da zona rural:

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– São enviadas atividades impressas entregues semanalmente nas casas das crianças: é o caso de uma escola no sertão de Araripe, no Ceará – conta Maria do Socorro. – São entregues por monitores ou disponibilizadas na escola para que as famílias recolham. As alfabetizadoras recebem o retorno dessas atividades por meio de fotocópias feitas pelos monitores e enviadas pelo WhatsApp. Podemos afirmar, com base na voz das docentes, que é praticamente impossível saber se as crianças estão de fato aprendendo, uma vez que a interação real dos alunos é com as famílias, e não com as professoras.

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Mas não é só a dificuldade de acesso à tecnologia que dificulta ou atrasa o aprendizado das crianças: segundo a professora Denise Maria de Carvalho Lopes, da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), a interação direta com professores ou mediadores e também com outras crianças é parte importante dos processos de alfabetização e letramento.

Ela destaca que a alfabetização envolve muitas aprendizagens diferentes – entre elas, compreender a cultura escrita (para que serve a escrita? O que fazemos lendo e escrevendo?); aprender como se escreve (quais são as letras, suas formas e funções? Quais sons elas representam?); entender os procedimentos necessários à leitura e à produção de textos escritos; etc.

– Como todas as aprendizagens, especialmente as que implicam objetos de conhecimento mais complexos, a alfabetização exige, para que se concretize, interações dos aprendizes com os objetos de conhecimento envolvidos – afirma Denise. – E é preciso mediação para que a escrita se torne acessível e compreensível. Essa mediação se faz por meio de intervenções pedagógicas que precisam ser intencionais e sistemáticas, o que exige, do professor, conhecimento sobre os aprendizes: quem são, como vivem, qual o lugar da escrita em suas vidas, o que já sabem sobre como se escreve e como se lê…

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Durante a pandemia, as salas de aula foram substituídas pela sala de casa
Durante a pandemia, as salas de aula foram substituídas pela sala de casa (Foto: Unsplash)

Permitir o diálogo vivo entre professor e aluno é parte do que faz o ensino presencial tão importante – mas essa não é a única interação relevante no processo.

– A interação com os pares, com as outras crianças, também é fundamental, pois propicia trocas de interesses, de ideias, modos de compreensão, de produção sobre a escrita – a professora relata. – Nas relações com colegas de grupo é possível mobilizar sentidos e procedimentos ainda não apropriados. Por vezes, entre os próprios aprendizes emergem jeitos de explicar ou interpretar um conceito, uma regra, uma relação que ajudam a torná-los mais compreensíveis do que com a explicitação da professora. Desse modo, a alfabetização pode se efetivar, não apenas de modo mais rápido, como mais eficiente.

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Acertos e erros das famílias

O papel dos pais no processo de alfabetização das crianças – que sempre foi fundamental – ficou ainda mais destacado desde o início da pandemia.

– A família viu-se em uma situação em que sua residência foi transformada em sala de aula – comenta a professora Gabriela Medeiros Nogueira, da FURG (Universidade Federal do Rio Grande). – O papel da família tem sido fundamental, não apenas em promover as condições para a criança estudar, tais como ambiente favorável e dispositivos tecnológicos, mas também reorganizar a rotina domiciliar para estar disponível junto à criança no desenvolvimento das atividades.

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– Os pais ou responsáveis precisaram não só auxiliar na realização das atividades, como ser os mediadores do processo de ensino e aprendizagem – ela completa. – Considerando que a maioria dos familiares não tem formação pedagógica, nem conhecimento acerca das especificidades que envolvem ensinar a ler e escrever, assumir esse papel é um imenso desafio. É necessária uma grande parceria entre a família e a escola para dar conta, minimamente, da aprendizagem das crianças.

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A professora Patrícia Corsino, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), porém, lembra que os pais ou responsáveis não devem querer assumir integralmente o papel de professores.

– As famílias não têm obrigação de saber como ensinar – aponta. – Alfabetizar uma criança exige um saber fazer que se baseia em estudos e não numa memória de infância ou em suposições. Esta transferência gerou e tem gerado muitos equívocos. O papel dos pais na alfabetização das crianças deveria ser o de compartilhar práticas de leitura e de escrita com elas: ler histórias, poemas, conversar sobre as leituras. É importante ter em casa lápis, canetinhas coloridas, papéis, caderninhos. As crianças precisam primeiro desenhar muito.

Gabriela Medeiros Nogueira, da FURG, aponta um desses equívocos: professoras participantes de uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Alfabetização e Letramento – GEALI, vinculado à FURG, relataram que muitos pais “corrigem” as atividades feitas pelas crianças antes de entregá-las aos professores.

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– O modo como a criança escreve é um importante subsídio para que os professores identifiquem em que etapa do processo de alfabetização a criança se encontra, a fim de elaborar atividades que as ajudem a avançar na aprendizagem – argumenta. – Se os erros que as crianças cometem na escrita forem apagados ou corrigidos, todo o processo de ensino e aprendizagem fica comprometido.

– Os desafios são muitos, reconheço – pondera a professora Ana Lúcia Machado, cujo relato abriu esta reportagem. – Vão desde as questões relativas ao acompanhamento e avaliação das aprendizagens, aos patrimônios familiares para ajudar nos processos de rotina de estudos, aos domínios de professoras e professores das tecnologias e novas formas de mediar os processos de ensino, à inclusão indistinta de todos os sujeitos nos processos de aprendizagem, ao estreitamento de vínculo com as famílias. Essas discussões já estavam colocadas na escola presencial, e nós ainda não as superamos.

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– A pandemia nos deixa como lição que, como profissionais da educação, precisamos ser cada vez mais “educomunicativos”; precisamos nos apropriar das possibilidades das tecnologias da informação e comunicação; mas ao mesmo tempo continuar insistindo em escolas como laboratórios de aprendizagens com banda larga para todos, e na valorização da carreira docente – resume o professor Lourival José Martins Filho, da Udesc, presidente da Associação Brasileira de Alfabetização. – A pandemia mostra ainda que a relação docente e aluno é fundamental, mas que precisamos aprimorar nossas práticas pedagógicas em função dos desafios dos novos tempos.

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Entre esses desafios, a professora Ana Lúcia Machado cita, simplesmente, “tornar a vida das crianças mais feliz”.

– As crianças estão sofrendo com o isolamento, com o medo da perda de entes queridos, com a perda de familiares, com informações distorcidas e assustadoras – enumera. – Tornar os encontros momentos de aprendizagem e de alegria é um super desafio que me move em cada planejamento. Foco muito no bem estar, na felicidade, na autoestima. Questões muito importantes sempre; e, hoje, mais do que nunca!

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