Quando a kombi passava pelos trilhos do trem da rua Monsenhor Gercino e abria suas portas na frente da antiga Escola Santa Catarina, no bairro Itaum, era como se um novo mundo surgisse para a menina que Marlete Cardoso era há 50 anos. Na época, o veículo fazia o papel de biblioteca ambulante para as escolas públicas e ela, apaixonada por livros, encontrava-se ali com os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e com histórias que a intrigavam e emocionavam. Os encontros não duraram muito tempo: assim como acontecia a muitas crianças na época, principalmente às meninas, ao terminar a quarta série do Ensino Fundamental, ela sabia que não voltaria à sala de aula no ano seguinte.

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— Meu pai achava que as mulheres não precisavam estudar mais do que isso porque casariam e cuidariam da casa. Mas era normal que nem todas as crianças continuassem estudando além da quarta série. Era um investimento alto, mesmo na educação pública, porque precisava comprar uniforme, material, livros, e as coisas não eram tão acessíveis como são hoje — recorda Marlete.

A sede pelos livros, no entanto, não havia sido saciada naqueles poucos anos de escola. Sem obras literárias em casa a não ser a Bíblia — que ela leu inteira duas vezes em busca de formas de mergulhar dentro da própria imaginação —, Marlete escrevia e sonhava com o dia em que teria uma máquina de escrever para produzir os próprios livros. Até que, aos 15 anos, foi trabalhar na antiga Livraria Record, na rua Quinze de Novembro, e reencontrou as paixões de infância entre volumes novos e desconhecidos.

— Eu ficava atenta para ver o que os outros jovens vinham comprar, para ler também. Então, um cliente me levou para conhecer a biblioteca pública. Eu olhava para todas aquelas prateleiras cheias e não conseguia acreditar. Pensei: “tudo o que podia ser escrito já foi escrito” — conta ela.

A juventude não podia fazê-la prever que, um dia, não só ela ainda trabalharia entre aquelas prateleiras como teria suas próprias obras sobre elas. Quando já podia pagar pela própria educação, Marlete voltou para a escola, cursou o magistério e graduou-se em pedagogia. Passou a maior parte da vida adulta transformando aquele mundinho da biblioteca ambulante da infância em galáxias inteiras para as crianças que alfabetizou nas escolas de Joinville e incentivando a leitura no período em que foi funcionária da biblioteca pública.

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Novos mundos possíveis

Agora, já aposentada, a professora foi abrir outros “portais”: há três anos, estreou na literatura infantil com “Coração Guarani”, que teve seu lançamento na Feira do Livro de Joinville; e neste fim de semana lança seu segundo livro, “Macacos na Teia”, sobre o qual irá palestrar para alunos das escolas pública também no evento. A chegada ao momento de realizar sonho de infância de Marlete coincide com o ponto de partida de outra menina joinvilense: foi com a obra sobre os macaquinhos que ficam viciados em celulares e redes sociais que Giovana Mileo, oito anos, estreou no teatro.

Giovana não precisa se preocupar com o futuro da própria educação: ela e a irmã gêmea, Sofia, tem em casa a estrutura e o apoio para aprender. O que frustrava a menina era o início da trajetória, atrapalhada por um distúrbio da fala chamado de dislalia. Apesar de não prejudicar o aprendizado, a comunicação nos primeiros anos de escola era complicada e a vontade de participar do grupo de teatro da Escola Municipal Anita Garibaldi tinha que ficar guardada num cantinho do peito. No início deste ano, ela conseguiu ingressar no grupo e fez sua estreia com a adaptação do livro de Marlete para o teatro.

— Ela decorou todas as partes, não só a dela. Quando chegou em casa, depois da apresentação, os olhos brilhavam de felicidade. Incentivamos muito a leitura e todas as outras formas de arte, e isso tem contribuído muito para o desenvolvimento dela — conta a mãe, Lorenne.