Ali vem meu pai com a mala no carrinho do aeroporto para o final de ano. Há quanto tempo não recriamos essa cena, eu esperando pela sua chegada no saguão do Hercílio Luz, em Florianópolis?

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Três anos, acho. O tempo em que vivi na cidade dele, São Paulo, e simplesmente não estava na Ilha quando ele aterrissava. Fui morar lá para trabalhar e um dia me contrataram como repórter de turismo da Folha, até que eu pedi demissão súbita e voltei a Florianópolis não por não gostar de São Paulo, mas por não me gostar em São Paulo. Claro que essa nuance eu admito agora. Enquanto você e uma cidade não estão se entendendo, a culpa é dela: é quando você cria toda uma sociologia amadora fanática, cheia de o-problema-do-pessoal-daqui-é-que.

Tudo bem, sigo achando que o-problema-dos-paulistanos-é-que em geral eles têm uma perspectiva distorcida do ócio, não entendendo muito bem o que inteligências menos sobrecarregadas de ambição profissional podem fazer pela vida privada a longo prazo. Minha contrariedade, em todo caso, talvez tivesse uma fonte mais simples. É que na cidade em que crescemos temos uma noção mais encorpada de tempo. Passamos anos, por ruas e bairros, espalhando significados que depois reativamos com a memória voluntária ou involuntária, essa disparada pelo que Proust chamou de “minutos idênticos”. Florianópolis, onde eu cresci, tem muitos minutos desses para mim; São Paulo, poucos, e não me gostei por lá porque não aprendi a lidar com essa vida menos cercada de passado.

No aeroporto, meu pai larga o carrinho e finge socos de boxe na minha barriga que finjo defender e retribuir, nossa pantomima de saudade preferida porque somos meio desajeitados com tudo isso. Agora estamos no carro. Como sempre, desde que deixei o emprego que me pagava para visitar ilhas gregas, comecei a me justificar profissionalmente: que a revista que criei com amigos está começando a ter reconhecimento editorial, que tenho um livro em andamento.

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– Hum – diz meu pai, um sábio das elipses.

– Já tenho até o título – digo.

– Hum.

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Então vem do fundo d’alma dele essa risada alta e inflamável dentro do carro no pouco trânsito das 23h. Ele está no banco do carona com a mão esquerda envolvendo o prendedor do cinto de segurança, a direita enganchada, com todos os dedos exceto o polegar, na borracha de vedação da porta.

Olhamos juntos para a ponte Hercílio Luz, mas só para as luzes mais de cima porque o guard rail da ponte Pedro Ivo está alto. Verão começando, céu limpo estável, amanhã deve dar praia. Que risada boa: prolongada, sem contribuição consciente. Quando ela cessa, meu pai parece se perguntar se me ofendeu. Tenho vontade de dizer: claro que não, chega de filhos muito psicanalisados culpando os anteriores na árvore familiar, não sei nem mesmo explicar quanto te devo.

Mas não digo, e ele agora encontra mais um resíduo da risada. Talvez seja o começo de uma semana com conversas menos previsíveis nossas. Amanhã acho que vou levá-lo naquele restaurante de frutos do mar que precisa 10 minutos de trilha, fica depois da garagem com roupas estendidas do dono e é desconhecido até mesmo da maioria dos manezinhos. Vamos ver se não ficamos bêbados juntos, que isso também faz tempo. Preciso contar mais sobre o livro, e com certeza manter o título. Ele precisa descansar bem antes de outro ano em São Paulo. Quem sabe não trocamos mais uns socos na barriga.

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