Nas ruas desta capital, a batalha pelo futuro do Quênia pode se resumir a Hitler versus Google.

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Hitler é um matatu cor de framboesa berrante, um dos milhares de micro-ônibus que atendem ao sistema metroviário de Nairóbi. O dono afirma não ter intenção de ofender ao batizar o ônibus com o nome de um maníaco genocida. Ele simplesmente gostou do que chamou de “aqueles nomes muito engraçados”.

Hitler vem se comportando mal ultimamente, recusando-se a adotar uma nova tecnologia que poderia revolucionar um dos setores mais irregulares e lucrativos em dinheiro vivo da África Oriental.

O Google, que também poderia ser descrito como um nome muito engraçado, vem defendendo a nova tecnologia: um pequeno cartão de transporte verde que substituirá pagamentos em dinheiro e rastreará as transações nos micro-ônibus, dificultando o suborno de policiais e abrindo caminho para que o governo embolse milhões de dólares em impostos.

Porém, apesar do investimento substancial do Google e do prazo do governo queniano para que todos os matatus parassem de usar dinheiro em primeiro de julho, Hitler é a regra, não a exceção.

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O pequeno cartão verde do Google incitou forte resistência, com a grande maioria dos matatus do Quênia ainda operando com a moeda preferida – cédulas sujas – enquanto disparam lotados de passageiros pelas ruas de Nairóbi, costurando no trânsito como moscas dopadas.

– As pessoas consideravam o Google louco por entrar no setor de transporte do Quênia. Quando nos envolvemos, ninguém queria chegar perto disso – disse Dorothy Ooko, executiva da sucursal de 40 funcionários da empresa em Nairóbi.

O Google não desistiu, e a batalha para modernizar o indisciplinado setor de transporte demonstra os desafios na adoção de tecnologia de ponta em alguns dos países mais pobres do mundo.

Em todo o continente, a África analógica de antigamente ruma ao futuro digital em velocidades variáveis. Ruanda investiu pesadamente na internet da banda larga embora a maioria de seus habitantes seja de camponeses. Na República Democrática do Congo, mulheres vendem iPhones a US$ 500 em pequenos quiosques iluminados por tocos de velas.

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O Quênia não é tão pobre quanto esses países; em média, o queniano ganha US$ 5 por dia. O país também é um líder mundial em transferência de dinheiro por celulares e se gaba de ter um dos índices mais elevados de utilização da internet na África subsaariana. Alguns matatus têm até Wi-Fi.

Embora o governo queniano ainda se ocupe com tensões étnicas, uma oposição política revigorada e uma enxurrada recente de ataques terroristas, o presidente Uhuru Kenyatta, viciado em Twitter, fez da tecnologia uma das marcas da sua presidência.

Muitas de suas iniciativas, no entanto, colidiram com a realidade confusa. Um exemplo é sua promessa de campanha do ano passado de comprar um laptop para cada aluno de escola primária do Quênia. Eles ainda não chegaram, porque o contrato com uma empresa indiana está preso numa disputa jurídica.

O mesmo se dá com a iniciativa do país de migrar para a TV digital. O governo de Kenyatta disse há pouco tempo que anunciaria algumas empresas estatais na internet em vez de recorrer a anúncios caros nos jornais, mas a imprensa queniana esperneou dizendo que isso era uma tentativa de levá-la à falência.

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O governo acredita que disponibilizar serviços online combata a corrupção, flagelo renomado. Toda interação com as autoridades, desde solicitar um passaporte a ser parado por fazer uma conversão proibida no trânsito, é facilmente lubrificada com um sorriso, um aperto de mão e “kitu kidogo”, que significa “uma caixinha” em suaíle. Quando as coisas migram para o mundo virtual, os passos ficam automatizados, anônimos e se elimina a caixinha.

– O que queremos fazer é minimizar o contato humano – disse Manoah Esipisu, porta-voz do governo, balançando tristemente a cabeça.

O setor de matatu pode ser o melhor exemplo. Milhares de trabalhadores usam matatus todos os dias. Motoristas de olhos vidrados “pegam à força” passageiros desafortunados no meio-fio e costuram pelas fileiras de veículos, por vezes passando sobre a calçada.

Os matatus são barulhentos em todos os sentidos: música a todo volume, pinturas malucas, nomes selvagens (Gângster, Psicótico, Nada Sinto), e também matam.

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Como os proprietários geralmente cobram um valor fixo para o uso dos ônibus durante o dia, motoristas e cobradores arrancam tudo quanto é centavo dos passageiros espremendo-os o máximo possível e levando-os ao destino em velocidade mortal. Um único acidente pode matar pelo menos uma dúzia de pessoas.

Se um policial parar um matatu por excesso de velocidade ou superlotação, não tem problema. O motorista dá a ele um punhado de dinheiro pela janela.

Um dia desses, o motorista do Hitler, sujeito baixinho e tagarela chamado Nicholas, violou cinco leis ao mesmo tempo: falava ao telefone, atravessava sinais fechados, tocava Rihanna a todo volume, não usava cinto de segurança e fechava veículos. Nicholas preferiu que o sobrenome não fosse revelado, temendo as consequências por seu estilo impiedoso de enfrentar o trânsito.

A ideia de usar tecnologia para atacar o problema dos matatus começou anos atrás quando executivos do Google observavam pelas janelas os matatus ocupando a rodovia Uhuru, e viam os passageiros pagarem o dobro pela corrida (os micro-ônibus sempre aumentam as tarifas em dias de chuva). Então, começaram a pensar num cartão de transporte.

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Com engenheiros de um laboratório da empresa em Zurique, a equipe do Quênia ajudou a criar um cartão de plástico especial que usa inúmeros recursos da tecnologia da comunicação, então nem sequer é preciso passar o cartão, apenas encostá-lo em um aparelho de leitura. O Google criou um aplicativo simples para ser usado pelos cobradores de matatus por meio de celulares com Android.

O governo de Kenyatta ficou empolgado. O plano era monitorar digitalmente toda a atividade dos matatus, eliminar roubos e cortar o incentivo para dirigir com tanta imprudência. Sem dinheiro, os motoristas e cobradores passariam a receber salários mensais. O governo se mostrava ávido em coletar impostos de um setor com movimento estimado em US$ 2 bilhões, mas como a maior parte dele se dá com notas velhas, ninguém sabe ao certo.

O Google deu a tecnologia de graça, com uma condição: quem quiser um cartão BebaPay (“beba” significa “transporte” em suaíle) deve abrir uma conta no Gmail, o serviço de e-mail gratuito e onipresente da empresa.

– É isso. Nós ganhamos usuários – disse Ooko.

Porém, os proprietários de matatus não querem usuários do Google.

– O Quênia é uma economia baseada em dinheiro vivo – gritou um cobrador num dia desses, quando perguntando se o ônibus aceitava cartões BebaPay. Algumas dezenas de linhas disseram aceitar os cartões, mas a maioria dos cobradores os rejeitavam com desdém. Outras empresas lançaram cartões concorrentes, mas poucos trabalhadores os adotaram até agora.

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Reconhecendo o poder dos cartéis de matatus, o governo ampliou o prazo por vários meses, dizendo ser necessário repensar a implantação.

O proprietário do Hitler, Joram Kamau, ainda não se convenceu. Quanto ao nome do ônibus, ele possuía uma vaga noção das atrocidades orquestradas por Adolf Hitler, mas nunca tinha ouvido falar do Holocausto. As escolas quenianas não ensinam isso.

– Eu brigava bastante quando criança. Era duro na queda. A molecada do bairro me chamava de Hitler – contou Kamau.

Assim, quando comprou o primeiro matatu dois anos atrás, ele o batizou com seu apelido. “Hitler” está pintando em letras grandes no para-brisa e bordado em todos os assentos.

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O Hitler pode optar pelo cartão um dia.

– Acabei de pegar a papelada. Veremos. Estou aberto à ideia – afirmou Kamau.