Dizem que quando nasce um filho, nasce também uma mãe. E assim como num parto, cada mãe vem ao mundo a seu tempo. Com ou sem dor, com mais ou menos sofrimento. Em alguns casos, o processo demora algumas horas. Em outros, leva dias, meses. Ou até uma

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vida inteira. O fato é que aquela esperada explosão de encantamento e de amor incondicional, ao primeiro contato com o bebê, nem sempre acontece assim tão rápido. É quando, junto com a mãe, nasce a culpa.

Na maternidade idealizada, admitir que existe um “lado B” é quase um tabu. É nesta projeção da supermãe que encontramos as raízes das inseguranças que envolvem a chegada de uma criança ao mundo – seja de maneira biológica, seja por adoção. Não há planejamento que resista a um ser frágil e pequenino, que demandará atenção total e ditará as próprias regras sem dizer uma palavra sequer.

Magda Zurba, pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC), lembra que a primeira limitação imposta à mãe é de tempo. E nem todo mundo está preparado para vivenciar esta imposição sem sofrer.

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– Existe um mito romântico da maternidade que não leva em conta os desafios. Toda relação é construída, e é muito possível aprender a ser mãe. Isso inclui a perda de outros projetos pessoais e profissionais sobre os quais a mulher muitas vezes não tem coragem de falar, porque a sociedade criminaliza. É a elaboração de uma perda como outra qualquer – avalia.

Uma realidade diferente da idealizada parece ainda mais difícil de aceitar num momento em que estamos cercados por um mundo digital paralelo, com imagens de bebês sorridentes e saudáveis, onde não há choros nem noites em claro, fraldas sujas nem febre. Faltam estatísticas, mas psicólogos e obstetras relatam que cresce o número de mães tomadas por um sentimento de frustração por não conseguirem atingir o padrão de maternidade que projetaram. O que, em muitos casos, transforma-se em transtornos de ansiedade, estresse e depressão.

– Há pesquisas que mostram que muitas mulheres, depois de terem filhos, na vida adulta, têm maior dificuldade de serem felizes – diz Magda.

Culpa e maternidade são companheiras quase inseparáveis ao longo da história. Mas os padrões mudaram. Se nossas avós cobriam a barriga durante a gravidez, envergonhadas, ganhamos o direito e o prazer de exibi-la. Imagens bem produzidas de todo tipo de nascimento ganharam espaço nas redes sociais. Mas o novo status da maternidade, superexposta e supervalorizada, trouxe também novos pesos. O desejo do parto perfeito, a amamentação sem dor. A recuperação da antiga forma física. Ideais que, para muitas mulheres, são inatingíveis.

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– É natural ter um período de crise, de criação de uma nova identidade. Os holofotes estão voltados para o parto humanizado, a amamentação, e nem todas conseguem fazer isso. A mulher olha toda a sociedade dizendo que isso é tão natural e pensa: o que tem de errado comigo? Nós nos cobramos para sermos mães perfeitas, que vão dar conta de todas as coisas, de várias posições, de vários papéis. Isso traz um sentimento de culpa, de inferioridade – diz Liliane Genain Zapparoli, psicóloga do Hospital da Mulher da Universidade de Campinas (Unicamp).

Ana Paula Petry, psicóloga em Itajaí, teve duas gestações difíceis, com partos prematuros, e viveu a frustração de não conseguir amamentar o primeiro filho, Pietro. Foram cinco semanas em que ele perdeu peso, ao invés de ganhar. E um tempo muito mais longo para que a necessidade de alimentação artificial ficasse emocionalmente bem resolvida para a mãe.

– Me senti a pior mãe do mundo por não perceber que ele não engordava. Fui muito criticada pela família, por amigos, que diziam que eu não tinha tentado o suficiente. Só depois de muito tempo fui entender que ele não conseguia engolir. Chorei muito, tinha impressão de que não seria completa – diz.

Na segunda gravidez, Ana Paula descobriu que a filha tinha alergia à proteína do leite. Decidiu se submeter a uma dieta rígida, para conseguir amamentar durante 11 meses. Ao final deste ciclo, passou a se dedicar profissionalmente ao apoio às mães e abriu espaço nas redes sociais para debater assuntos que ela chama de “maternidade real”. No ano passado, o projeto virou um site, o Licença Maternidade, onde se discutem outros aspectos, como relacionamento e sexualidade da mãe.

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– Maternidade é a coisa mais incerta do mundo. Por mais que a gente saiba que não vai ser como imaginamos, não pensamos que será tão diferente do que esperávamos. As pessoas se identificam com isso, com a maternidade real, verdadeira. Muitas mulheres têm dificuldade de admitir que não gostam de alguns aspectos de ser mãe.

Maternidade sob holofotes ganha status glamoroso

O mito da supermãe caminha lado a lado com a maternidade há gerações, embora nem sempre sob a mesma roupagem. Já vivemos o estigma da mãe que se sacrifica pelos filhos, o da mãe que é o esteio emocional da família. Mas foi a partir dos anos 1990, quando as estrelas de Hollywood começaram a aparecer nas capas de revistas com seus bebês, que ele ganhou um novo status. Ser mãe também tem glamour.

Maria Collier, pós-doutoranda no Departamento de Engenharia e Gestão do Conhecimento da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estudou por sete anos a maneira como a publicidade fala com as mães. A coleta de dados e as entrevistas foram feitas no Brasil e no Canadá, com resultados similares.

– Quando falamos em maternidade temos um conjunto de normas, de regras sociais, que vão dizer o que é socialmente aceito. Toda essa romantização aparece também nos anúncios. Nas redes sociais, elas são menos tradicionais – avalia.

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Perfis de mães e bebês no Facebook e no Instagram são o mais recente “ponto de encontro” para as novatas – e, em muitos casos, uma das principais fontes de informação para as mães. Os debates incluem as polêmicas sobre liberar ou não a chupeta e o momento de incluir açúcar ou sal na alimentação, por exemplo. Entre likes e comentários, alguns perfis se tornam um fenômeno – como o de Marina da Luz, de São José, a @marinamaedoarthur, que tem mais de 22 mil seguidores. Tudo começou com fotos criativas do barrigão, produzidas pelo papai. Em poucas semanas, o número de visualizações triplicou. Com o nascimento de Arthur, o perfil mudou. As postagens falam da rotina de mãe e filho, trazem dicas de maternidade, saúde, e eventualmente o look do dia do bebê.

A dupla ficou famosa. Vez ou outra, Marina é parada nas ruas da Grande Florianópolis por seguidores que a reconhecem do Instagram e querem conversar com “a mãe do Arthur”. Mas a exposição também abriu espaço para palpites de todos os tipos.

– A exposição não me incomoda nem um pouco. Mas as pessoas questionam, por exemplo, por que eu amamento o Arthur até hoje, com dois anos. Respondo que é o jeito que escolhi e tenho muita certeza do que quero seguir com ele – diz.

Geralmente, a experiência é o caminho para passar ilesa pela patrulha das redes sociais. Mãe de três filhos, a jornalista Margareth Santos, 35 anos, decidiu levar a gestação e a criação de Manuela, a caçula, de uma maneira mais leve depois de muita preocupação com as opiniões alheias na criação dos dois meninos mais velhos.

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– A maturidade faz com que a gente mude a maneira de ver as coisas. Estamos levando do nosso jeito, sem ouvido para muitos palpites. Queremos seguir nossa intuição e aproveitar melhor, em família – comenta.

A hora certa para engravidar

A entrada no mercado de trabalho, décadas atrás, abriu as portas para novas possibilidades de realização além da maternidade. Mas o peso das tarefas domésticas continuou sobre os ombros da mulher. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, mostram que as mulheres ainda trabalham o triplo de tempo nos cuidados com os filhos e com a casa em comparação com os homens. Enquanto eles dedicam em média 11 horas por semana a essas tarefas, a média delas é de 26 a 30 horas. Um cenário que mudou muito pouco nos últimos 20 anos.

Mesmo para quem conta com a divisão de tarefas, conciliar o trabalho fora de casa com a criação de um bebê é um desafio. Os planos de Clarissa Pereira Rodrigues, 39 anos, eram se afastar do trabalho por pelo menos um ano após o nascimento de Nicolas, seu segundo

filho. Mas a saída repentina de um funcionário da empresa que ela mantém com o marido virou o planejamento de cabeça para baixo. O bebê passou a acompanhá-la ao escritório diariamente. O trabalho que sobra, ela leva para casa.

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– Estou muito cansada, tenho que fazer as coisas de casa e do trabalho, cuidar dele e do mais velho. É bem corrido. Mas encaro como uma fase, porque eles são muito pequenos – diz.

Como muitas mulheres na faixa dos 30 anos, Clarissa adiou a primeira gravidez. Quando começou a tentar, aos 33, não conseguiu. Foram quatro anos, uma cirurgia para endometriose e dois abortos até o nascimento do primeiro filho. Na gravidez, um diagnóstico de trombofilia – doença que predispõe à coagulação do sangue – a obrigou a tomar 500 injeções. Não à toa, o parto do primogênito, natural, está registrado e publicado na internet.

– Me senti empoderada, eu venci. Cheguei lá, sou mãe.

C asos como o de Clarissa são cada vez mais comuns nos consultórios médicos. Às vezes é preciso priorizar a carreira ou outras realizações pessoais antes da maternidade. Às vezes, o desejo de ser mãe demora a aparecer. Invariavelmente, a decisão vem acompanhada de angústia.

– As mulheres pensam, será que consigo engravidar? Até quando eu posso esperar? Será que a gravidez será de alto risco? Não temos literatura sobre isso porque as técnicas são recentes, mas com certeza esse aumento da idade trará consequências como a infertilidade. São óvulos não tão bons, e doenças que se a mulher fosse mais nova não teria – diz a médica Luiza Aguiar da Silva.

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Camila Frare, 33 anos, empresária em Timbó, no Vale do Itajaí, vive o mesmo dilema – mas ainda sem um final feliz. Tentou por três vezes o implante de embriões vindos da fertilização in vitro. Teve três abortos. Foi um ano inteiro de gastos, expectativas e injeções

de hormônios, que alteraram o peso e o humor. Um ano de ansiedade.

– Quando a mulher engravida de maneira natural, a ansiedade começa quando a menstruação atrasa. Num procedimento, ela é muito maior. Começa quando a data é marcada, depois são 10 dias para fazer o exame de gravidez. Durante todo esse período você sabe que há um embrião dentro de você.

Camila não encontrou explicação médica para os três abortos, mas desistiu de engravidar. Ela e o marido entraram na fila da adoção e estão à espera de uma criança.

O sonho da maternidade, afinal, prevalece. Seja pela via natural ou por adoção, ser mãe exige paciência, doação, adaptação e aprendizado. Um esforço hercúleo. Mas quem já experimentou sabe que, ao final, tudo vale a pena.

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Confiança entre médico e paciente

Há casos em que a frustração chega antes mesmo de deixar o hospital após o nascimento do bebê. São situações, por exemplo, em que ocorre violência obstétrica. Mas também aqueles casos em que o parto simplesmente não acontece como era esperado.

As informações sobre os riscos de cesarianas desnecessárias e sobre os benefícios do parto normal para a mãe e o bebê fazem com que muitas mulheres, ao engravidar, já decidam ter partos com o mínimo de intervenção. Dar à luz se tornou um símbolo do empoderamento feminino, um avanço importante na saúde pública brasileira.

No ano passado, o Ministério da Saúde divulgou que o número de cesarianas caiu no Brasil pela primeira vez em 18 anos, resultado de um amplo trabalho de conscientização e de metas para as maternidades, para que reduzam as intervenções cirúrgicas. É um compromisso do Brasil com a Organização Mundial da Saúde (OMS), devido ao alto índice de cesarianas – 55%, bem acima da média mundial, que é de 18%.

O ativismo pró-parto natural faz com que ele se torne um ideal a ser conquistado, com preparação física e psicológica. Mas o desejo de enfrentar a dor de peito aberto e de deixar a natureza agir nem sempre se realiza. São casos, por exemplo, em que há malformações fetais ou descolamento prematuro da placenta.

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– Há uma expectativa muito grande em relação à via de parto, e a mulher se frustra muito quando as coisas não são do jeito que ela sonhou. Por isso um bom pré-natal é importante, em que o médico explica o que é fisiologicamente normal, e que há indicações para cada tipo de parto – diz a obstetra Luiza Aguiar da Silva, de Florianópolis.

A confiança entre médico e paciente é o caminho para enfrentar bem as mudanças de última hora. Foi o que fez com que Juliana Menezes, delegada e mãe de Felipe, de dois anos, aceitasse a decisão de uma intervenção cirúrgica mesmo após ter se preparado durante toda a gestação para o parto natural.

– Na hora foi ruim, eu não queria. Mas depois que ele nasceu, isso passou. Era um obstetra que conhecia nossa forma de pensar, então foi uma cesariana com som ambiente, luz baixa, e meu marido cortou o cordão – conta.

Nem todas as mulheres têm essa mudança de planos tão bem resolvida. O que levou a curitibana Kauane Braciak a administrar no Facebook a página “Mães, cesárea e companhia”, que reúne mulheres em busca de apoio. São mais de 490 mil seguidores.

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– Já me disseram que a cesariana é uma extração fetal, que é retirar o filho como se fosse um tumor, que uma mulher que faz cesariana é menos mãe por causa disso. Para a mulher, isso se torna um motivo de humilhação.