Mulher, negra, nordestina. Assumidamente de esquerda. Daquelas que tem #elenão no perfil do Instagram. Seguida por 174 mil pessoas e fonte de inspiração para jovens estudantes. Assim é a soteropolitana Jaqueline Goes de Jesus, 30 anos, a cientista Jaque Goes, coordenadora da equipe que fez o sequenciamento do genoma do coronavírus.
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Balbúrdia nunca foi o foco da ex-aluna de Biomedicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Quando muito, uma paradinha para ver os jogos do time do coração, o Vitória, da Bahia. Pelo contrário, Jaque Goes sempre gostou de estudar e logo partiu para o mestrado em Biotecnologia na Fundação Oswaldo Cruz. Nada de malemolência, moleza, malandragem. Fez doutorado da Universidade Federal da Bahia. Em seguida correu para a Faculdade de Medicina da USP em busca do pós-doutorado.
Na última semana, o trabalho da cientista recebeu aplausos na Assembleia Legislativa da Bahia. O documento escrito pelo deputado Isidório Filho (Avante) destaca a alta performance de Jaqueline, que com o trabalho evidencia que “o que falta à ciência brasileira é investimento, pois talento e capacidade sobram”. Desde o anúncio do sequenciamento, Jaqueline e equipe não sossegam. Além de continuar trabalhando no genoma do coronavírus, precisam atender a imprensa.
Agradecida pelo interesse, a bolsista da agência de fomento da Fapesp e também professora-adjunta de Bioquímica da Escola Bahiana, demonstra a naturalidade de sempre. Escreveu no Instagram sobre a grande repercussão da descoberta:
Acostumada apenas com a repercussão dentro o meio científico, ainda estou tentando aterrissar nesse meio milhão de mensagens de parabéns e agradecimentos.
Foi generosa com os colegas de laboratório: “Não estou sozinha nesta jornada. Tudo é fruto do trabalho incansável de uma equipe extremamente dedicada da qual faço parte”, escreveu, citando nominalmente os pesquisadores. Entre esses, a supervisora Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora e professora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), com quem Jaqueline fez questão de estar na foto enviada à reportagem da NSC.
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“A gente mostrou ao mundo que é possível sim fazer uma ciência de qualidade”
Aos 30 anos, a cientista Jaqueline Goes de Jesus coordenou a equipe que fez o sequenciamento do genoma do coronavírus. Confira mais sobre a especialista na entrevista a seguir:
Como você se sente enquanto brasileira, mulher jovem e negra fazendo parte da equipe que chegou a um enorme avanço para a saúde pública mundial?
Como brasileira, negra e ainda jovem me sinto privilegiada, pois esse é um espaço ainda muito restrito e bastante difícil de se alcançar.
Precisou de muita luta?
A gente precisa se dedicar muito e fazer muitos sacrifícios pessoais para conseguir alcançar um nível mais elevado dentro da academia. Por isso, a palavra que neste momento expressa o meu sentimento é privilégio por ter conseguido estudar, de me instrumentalizar e isso, também, por ter recebido incentivo dos meus pais.
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O que levou você para o campo da pesquisa?
A minha relação com a pesquisa é algo natural. No terceiro semestre da graduação fiquei sabendo sobre um projeto de iniciação científica. Fiz a seleção, fui aprovada e comecei um projeto com o coordenador do curso. Fui adquirindo conhecimento e em pouco tempo fui convidada por uma professora para migrar para a Fundação Oswaldo Cruz, uma instituição renomada no Brasil. Inicialmente trabalhei num projeto de HIV, e fui migrando para outros.
Você é uma pesquisadora negra e talvez tenha enfrentado dificuldade para chegar até aqui.
Sou pesquisadora negra, e como pesquisadora negra no Brasil enfrento dificuldades em todos os âmbitos da vida. Não é em um local específico ou com um grupo específico: a gente sofre preconceito todos os dias, pois existe o preconceito velado por conta desses séculos vividos onde a pessoa de pele preta nunca foi valorizada e sim inferiorizada. Com o passar do tempo isso foi vinculado a pessoas de baixa intelectualidade, de baixo poder aquisitivo, da marginalização na sociedade.
Mas você enfrentou isso também?
Dizer que como pesquisadora negra não encontrei dificuldades é hipocrisia. A diferença é que dentro da academia as coisas nunca foram muito explícitas: há racismo velado e alguns comentários que as pessoas fazem em “tom de brincadeira”, mas que a gente sabe que tem tom racista. Diria que sofri e sofro, mas considero ser mais por falta de interesse em discutir e problematizar a situação racial do país. Nunca me disseram você é negra, você é menos inteligente. Mas a gente sente nas entrelinhas. Talvez sinta mais por ser muita ligada às lutas que envolvem questões raciais da população preta do Brasil. Não gosto de usar o termo negro por estar relacionado a um ser sem luz. Sou uma mulher de pele preta.
Foi muito difícil chegar ao pós-doutorado na Faculdade de Medicina da USP, um lugar bastante cobiçado por muitos pesquisadores muitas vezes oriundos das melhores escolas do país?
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É muito difícil seguir na ciência. A ciência brasileira não tem incentivo. Passei minha vida na academia brasileira e seis meses de estágio na Inglaterra. Foi lá o tempo em que mais produzi e pude demonstrar a capacidade que nós brasileiros temos, pois existiam recursos.
Então, no Brasil é falta de recurso?
Sim, o que falta no Brasil é recurso, mas também valorização profissional. O fato da profissão de cientista não ser regulamentada no Brasil dificulta muito o nosso trabalho. Não temos visibilidade. Por isso estamos aproveitando esse momento para divulgar o máximo, fazer com que a população saiba o que a gente faz, que se interesse sobre o que nós fazemos. Nós precisamos chamar a atenção dos nossos políticos para que a profissão seja regulamentada.
Do ponto de vista de investimento em ciência, que lição o Brasil precisa tirar deste feito que levou ao isolamento do genoma do coronavírus deixando outros países para trás?
O Brasil está vendo agora que a ciência brasileira com investimento consegue dar respostas em nível internacional de pioneirismo. Talvez com esse feito a gente possa despontar em relação a outros países que estão tendo não só casos isolados, mas também epidemias. A gente mostrou para o mundo que é possível sim fazer uma ciência de qualidade.
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