Quando eu digo que nesta terrinha os sinais vêm do além, ninguém acredita. O mítico blecaute de 2003 é um deles e faz parte da nossa história. Agora tem o causo do carro que foi parar na Lagoa da Conceição.

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O motorista está bem, não tinha bebido, apenas se perdeu numa curva. Dá para dizer que foi salvo pela Lagoa. Mas percebam a força da imagem: um carro cercado pela mesma água que cerca esta Ilha. Já escrevi aqui que uma ilha que não usa o mar para se movimentar pode afundar.

Florianópolis é a Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues. Na peça de teatro, o mar é protagonista – e dizem que ele chama as pessoas. Nossa Lagoa chamou aquele carro, como se gritasse: “Menos verticalização, mais integração! Pela alma penada do maldito Henry Ford, não tragam mais carros pra cá!”. E isso acontece em plena discussão do novo plano diretor. Então, é um sinal!

Aproveito para fazer uma previsão óbvia: andar de carro no futuro será coisa de babaca. E não porque você é, mas porque age ou se sente como um. E no futuro terá amadurecido tal conclusão. Fica mais tempo dentro de um carro do que com seus filhos, por exemplo. Sai bem-humorado do trabalho, mas chega em casa nervoso e briga com todo mundo depois de algumas horas no trânsito.

Se viver assim em São Paulo é um pecado, em Florianópolis é ainda mais. Em São Paulo pego desvios, ando um pouco e tenho a sensação que estou chegando. Me sinto menos idiota. Em Floripa não se tem para onde fugir, carro não sabe nadar.

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E o crescimento da cidade parece não prestar atenção no que aconteceu em outros grandes centros, como o Rio de Janeiro, que tem o metro quadrado com preço inversamente proporcional à qualidade de vida. Florianópolis, aliás, está cada vez mais parecida com o Rio. Será que ainda dá tempo de mudar?

O automóvel é a praga do século. Se você pretende viver numa cidade com grande ou médio número de habitantes, vai ficar no trânsito ou vai usar o transporte coletivo. Se preferir só andar de carro, tenha dinheiro para chamar um táxi. E, por favor, não faça como aquele amigo que ganhou uma grana, comprou uma Pajero e joga latinha pela janela. Se a Lagoa resolve “chamar” esse cara, não vai pegar leve com ele.

* * *

Antes de encerrar, algumas situações: eu, babaca no automóvel.

São Paulo 1. Fui assistir a uma peça de teatro no Centro. Trânsito. Chego atrasado, deixo o carro na rua. Quando volto o vidro traseiro está quebrado, lataria do teto amassada. Não foi tentativa de furto. Jogaram um vaso do alto do prédio! Depois descubro que isso é algo comum naquela região.

Florianópolis. Estamos nos Ingleses e vamos jantar com minha irmã que mora no Estreito, 40 quilômetros. Só temos três noites na cidade, e a família pouco se vê. Acidente na SC-401. Quatro horas para chegar ao destino, a fome aumenta, quatro horas com motorista estressado. Família que quase não se vê, não se viu. Motorista teve crise de gastrite e não dormiu.

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Rio de Janeiro. Estou em Jacarepaguá e tenho que chegar em Ipanema, 39 quilômetros. Horário de pico, tudo parado. Penso em tomar um Guaraviton desses vendidos no semáforo carioca. Encontro o vendedor, pego a carteira, compro. Enquanto vai em direção a outro carro, vejo que o rapaz, distraído, coça o sovaco no gargalo de outra garrafinha.

São Paulo 2. Viagem de turnê de teatro marcada. O voo sai de Guarulhos. Quatro atores resolvem ir de carro até o aeroporto, eu dirigindo. Acidentes na Marginal Tietê, três horas de trânsito infernal. Sinto a vibração de todos aqueles carros na pista subir pelos meus braços através do volante, o corpo todo vibra de raiva. Muita tensão, tento respirar fundo, bater papo com os amigos. Um deles recebe ligações de 15 em 15 minutos, perguntando se estamos chegando. O que acontece depois é impublicável.