Dezembro de 2008. Fortes chuvas atingem o Vale do Itajaí. Rios transbordam e morros desabavam sobre ruas e casas. Ao menos 60 cidades são afetadas e há mais de 100 mortos. Cerca de 6 mil pessoas se unem ajudar quem perdeu tudo.
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Janeiro de 2011. Chuva na região Serrana do Rio de Janeiro mata mais de 500 pessoas. Em uma semana, moradores de Florianópolis conseguem arrecadar 25 toneladas de donativos para as vítimas.
Abril de 2015. Tornado com ventos de 250 Km/h destrói cerca de 2,6 mil casas em ao menos três cidades no Oeste do Estado. Duas pessoas morrem e crianças ficam gravemente feridas. As doações foram tantas que, um dia depois da tragédia, os donativos já começavam a ser entregues para as famílias.
Maio de 2018. A paralisação dos caminhoneiros autônomos provoca transtornos pelo país. Em Santa Catarina, o terceiro Estado com o maior número de bloqueios nas rodovias federais, postos ficam sem combustível, falta gás de cozinha, escolas e creches estão fechadas, serviços de saúde são limitados, transporte coletivo é reduzido e há até escassez de alimentos nos mercados. Em meio a esse cenário caótico que durou 11 dias, novamente surge essa atitude característica dos moradores de Santa Catarina: a solidariedade, a compaixão e a união.
— A solidariedade desponta em pessoas que já passaram por alguma dificuldade. O povo catarinense tem um lado humano que aflora em função de já ter vivido na pele a situação de vítima. Então, no momento em que ele não é a vítima, ele se solidariza a outras pessoas, minimizando a dificuldade em que as pessoas se encontram naquele momento — define o coronel reformado do Corpo de Bombeiros, Carlos Olímpio Menestrina, que em 2008, à frente da Defesa Civil, atuou como chefe de resgate e socorro na tragédia em Blumenau.
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O melhor dos instintos
Esse traço tão evidente durante as tragédias, presente na explicação do coronel Menestrina para justificar as boas ações dos catarinenses, possui também forte respaldo científico. Filósofos defendem em estudos sobre psicologia evolutiva, por exemplo, que um dos instintos naturais dos seres humanos, por viverem em sociedade, é o de cooperação. Instinto esse que, ao longo dos anos, como resultado de agir e reagir ao ambiente, pode mudar, ainda que siga presente em cada um. Nesses casos, o exemplo positivo é o melhor caminho para que uma boa ação seja disseminada em toda uma comunidade, explica a psicóloga cognitiva-comportamental, especialista formada pela Universidade de São Paulo, Caroline Busarello Brüning.
— A melhor maneira de uma pessoa mudar o comportamento dela é ela perceber que mudar é uma boa ideia. E ela faz isso porque vê que está funcionando para outras pessoas. Muitas vezes atos positivos e de bondade vêm da observação das pessoas ao meu redor. É quando a gente vê pessoas cantando juntas, fazendo manifestações pacíficas ou então grandes grupos querendo fazer serviço voluntário — exemplifica.
Ainda conforme a especialista, uma das explicações que justificam a trajetória de solidariedade do catarinense é a cultura em que a população está inserida, com longo histórico de intempéries, que fez com os moradores se acostumassem a lidar com dificuldades. Ela ainda cita que alguém solidário já convive, em sua cultura familiar, com a bondade ao próximo.
— Apesar de a nossa primeira ideia de cooperação ser instintiva, tem a outra parte que envolve o raciocínio e daí envolve o nosso aprendizado, que faz com que a gente repense o nosso instinto de ser legal. Então, haverá uma tendência de ajudar porque essas pessoas já experimentaram isso. Para elas terem compaixão é mais fácil, mas também não dá para generalizar. Quando falam que se você seguir fazendo determinada coisa você se dará mal, isso nos impede de sermos bons — alerta a psicóloga.
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Para a pomerodense de coração Magrit Krueger, 68 anos, mesmo afetada pela paralisação dos caminhoneiros _ que provocou prejuízos milionários para o Estado, ainda sendo calculados pelos setores produtivos _ foi fácil a ela ter compaixão. A aposentada, que também faz trabalho voluntário na Rede Feminina de Combate ao Câncer e integra a Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas, saiu de casa por nove dias e foi caminhando, e até pedalando, aos dois postos de combustíveis localizados próximos de onde ela mora para prestar solidariedade aos caminhoneiros que lá estavam acampados.
Dona Magrit, a exemplo de outros brasileiros, identificou quem entre os caminhoneiros não era arruaceiro e promovia ali um movimento legítimo de insatisfação. Junto a outras duas amigas, levou café, alimentos e ofereceu também roupas limpas para os quase 70 motoristas que estavam estacionados nos pátios dos postos.
— Ficamos ali dando o nosso apoio, principalmente para os que eram de longe. Eles não precisavam só de comida e bebida, mas também de um ombro amigo e uma palavra de conforto. A gente sabe como foram difíceis esses dias, mas a população de Pomerode se uniu. Eles nos agradeceram a todo instante pelo que fizemos — lembra.
Colocando-se no lugar do outro
Vanderlúcia Sampaio Moraes, 51 anos, ou apenas Lúcia para os conhecidos, mora há mais ou menos sete quilômetros do local de trabalho em Gaspar, no Vale do Itajaí. Em dias normais, ia e voltava do serviço de ônibus, assim como muitos dos colegas de trabalho. Quando a paralisação nacional dos caminhoneiros autônomos estourou, afetando o transporte coletivo, o pensamento de Lúcia foi o de colaborar com o próximo.
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O tanque cheio do carro da família garantiu a boa e conhecida carona solidária. Ela começou levando outros três funcionários da mesma empresa que moravam ao longo do trajeto dela. A iniciativa da funcionária da loja de departamentos foi tão inspiradora que motivou a criação de um grupo para caronas dentro da empresa. É aquela disseminação de boas atitudes que a psicóloga Caroline Busarello Brüning mencionou.
— Eu nunca tinha passado por nenhuma situação assim, mas no momento em que teve a crise, no sábado passado, não tinha mais ônibus. Fui de carro e na volta já dei carona. No mesmo dia meu gerente teve a ideia de criar esse grupo. Muita gente se propôs a ajudar, até o pessoal do RH deu carona para quem mora em Blumenau — conta Lúcia.
A empatia da gasparense com as pessoas que não tinham mais como se deslocar de casa para o trabalho e vice-versa também é justificada pela psicologia. A doutoranda em psicologia e professora da Univali Bruna Manuela Adriano explica que o ocorre nesses casos é a chamada personificação do problema. Ou seja, é quando o problema ganha um nome, um rosto.
— Vimos acontecer dois comportamentos distintos no Estado. O de quem estava longe do problema e o de quem estava perto. Quando eu não vejo as pessoas, não sei o nome delas, não conheço quem está abastecendo ou comprando, eu não me solidarizo. Mas se eu vejo o sofrimento, tendo a ser mais empático e solidário. E é a postura dessa pessoa que vai tornar as coisas mais funcionais e práticas — define Bruna.
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Diferença que inspira
Lorimar Manfe, 42 anos, é produtor de queijos em Vargem Bonita, no Oeste de Santa Catarina. Ele entrava no nono dia sem conseguir embalar e distribuir um único produto lácteo. O estoque cheio era uma das consequências da paralisação nacional dos caminhoneiros autônomos. A greve do transporte rodoviário também acabou impedindo que uma nova carga de leite de quase 3 mil litros, recém comprada a R$ 1,20 o litro, chegasse até a propriedade de Manfe. Todo esse insumo que seria transformado em aproximadamente 300 quilos de queijo acabou ganhando um novo destino: a mesa dos vizinhos da família Manfe e dos vizinhos dos vizinhos também.
O agricultor conseguiu localizar o caminhão carregado de leite e, no pátio de um posto de combustíveis, transferiu a bebida para outros recipientes. De jarra em jarra, deu o leite para o grupo que se aglomerava segurando garrafas de refrigerante vazias e panelas. Manfe define como um “ato de manifestação” o gesto que impediu o descarte dessa porção de leite, como infelizmente acabou ocorrendo em tantas outras propriedades do Oeste e Sul do Estado.
— Foi algo bem legal de se fazer, não soube de mais ninguém que fez isso por aqui. Tenho uma fábrica pequena de queijo, mas em função da greve ficou tudo parado. Os produtores que também compram leite não estavam conseguindo recolher e ia ter que jogar tudo fora. Jogar fora não tinha como, porque é o fruto do nosso trabalho, mas também não ia ter como produzir. Só aqui na região são uns 20 produtores que compram leite e precisaram jogar fora — conta o produtor.
Até a última quinta-feira, a estimativa do Sindicato das Indústrias de Leite e Derivados de Santa Catarina era de que 6 milhões de litros foram jogados fora diariamente desde o início da paralisação. Isso representa cerca de 80% do que é produzido por dia no Estado.
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A doutoranda em psicologia e professora da Univali Bruna Manuela Adriano classifica atos a exemplo desse de Lorimar como sendo de liderança. Segundo ela, reforça a imagem de que o catarinense se une em meio a crises e tragédias. Bruna ainda explica que um líder, nesse caso, é, primeiramente, uma pessoa desprendida de um enriquecimento pessoal e que, acima de tudo, não é alguém que irá resolver toda uma cadeia de problemas, mas sim tentará conduzir as pessoas para um objetivo em comum.
— Esse produtor criou uma situação gatilho que choca, que faz o outro pensar que também poderia ter agido assim. Acredito que situações como essa, em que pessoas tiveram iniciativas locais, algo até pequeno, mas dentro daquilo que cabia a ela, é ainda mais chocante para os demais. Por exemplo, eu posso estar a quilômetros de distância, mas posso estar vivendo a mesma situação, então eu me inspiro no resultado que aquela pessoa teve — detalha Bruna.
Assim como Magrit, Lúcia e Lorimar, outros tantos catarinenses anônimos transformaram a paralisação dos caminhoneiros em uma oportunidade para promover o bem, reforçando a histórica essência solidária do Estado.
Ao longo das duas últimas semanas, teve condômino de Itajaí liberando áreas de festa do prédio para que moradores sem gás pudessem preparar refeições. Houve ainda a união de vizinhas em se prontificar para cuidar dos filhos pequenos enquanto a mãe precisava trabalhar em Florianópolis. O empenho de agricultores que, sensibilizados com a iminente falta de alimentos em hospitais, se reuniram para doar o que sobrava em suas propriedades no Norte e também no Oeste do Estado. Foram registrados também atos solidários dos próprios caminhoneiros paralisados, que levaram alimentos para abrigos no Vale do Itajaí.
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Isso sem esquecer do trabalho das forças de segurança de Santa Catarina que, com veículos e aeronaves oficiais, conseguiram transportar remédios e insumos onde a escassez desses itens já ameaçava suspender o atendimento à população. Essas mesmas tropas ainda acompanharam comboios que levavam combustível para manter os serviços essenciais em funcionamento em todas as regiões. Foi o caso da Polícia Civil, que no dia 28, quando a greve já se alongava por oito dias, saiu de Tubarão para Concórdia levando de helicóptero medicamentos usados em terapias intensivas.
Paralisados pelo egoísmo
Em meio a tantos exemplos de solidariedade e união, a paralisação dos caminhoneiros autônomos também evidenciou momentos de egoísmo em Santa Catarina, como o aumento de preço dos combustíveis em um cenário onde o desespero dos motoristas para conseguir abastecer já era forte. Bem como a solidariedade, esse individualismo também tem explicação. Para especialistas, o impulso de agir de forma egoísta é reflexo do ambiente em que a pessoa está inserida, que no caso da paralisação era de estresse, e é também uma maneira de se auto preservar.
— Com o estresse causado pelo trauma, com a cobrança excessiva, mais a pressão e a ansiedade que isso causa, ativamos mecanismos de luta ou fuga, porque há essa sensação constante de ameaça. E uma das formas de se proteger é acumular coisas porque isso alivia a ansiedade — justifica Caroline Busarello Brüning, psicóloga cognitiva-comportamental, especialista formada pela Universidade de São Paulo.
Um dos gatilhos para ativar esses mecanismos, explica Caroline, são as imagens das gôndolas dos supermercados vazias, por exemplo.
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— De alguma maneira teríamos esse comportamento de manada de que é preciso correr para abastecer, que é preciso se proteger. É um mecanismo de sobrevivência que nos faz agir com certa agressividade. É o comportamento de um grupo que leva a agir assim e muitas vezes, por ter essa autorização no ar, a pessoa age assim sozinha também — esclarece a psicóloga.
Já na opinião do coronel reformado do Corpo de Bombeiros, Carlos Olímpio Menestrina, que comandou, em 2008, a operação de resgate e socorro durante a enchente em Blumenau, há uma grande falta de esclarecimento por parte da população. Para ele, as pessoas entram em pânico e perdem a razão.
99 denúncias em nove dias
Conforme dados do Procon estadual, nos nove primeiros dias da paralisação em Santa Catarina, foram registradas 99 denúncias de preços abusivos por meio do telefone 151. Sendo que deste total, 77 sobre combustíveis, 13 em supermercados, seis sobre o valor do gás de cozinha _ que era vendido na faixa dos R$ 70, R$ 80 e passou a ser anunciado por R$ 100 na Grande Florianópolis _ e outras três foram de outros produtos ou serviços.
De acordo com o diretor do órgão fiscalizador, Michael da Silva, em uma semana normal, se o Procon tivesse recebido uma única denúncia de venda de gasolina acima dos valores normais, seria muito. Em mês, estima o diretor, a linha 151 recebe em média 70 ligações por dia, sendo que a maioria é para pedir orientações e não para denunciar irregularidade.
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— É muito difícil o consumidor denunciar. Ele reclama do preço, para o marido ou para esposa, para o vizinho, mas não reclama onde deve, que é para os órgãos fiscalizadores. Mas nesses dias as ligações para o 151 aumentaram muito, foi atípico para os dois lados. Para o consumidor que não está acostumado a denunciar e para o Procon que não recebe tantas demandas por este canal — relata Silva.
Apesar do volume excepcional de ligações, o diretor confirma que a prática de preços abusivos é comum em situação assim e também é vista em catástrofes naturais ou até desabastecimento de água. Apesar de o problema ser histórico, o diretor do Procon pondera que é difícil conseguir tipificar esse comportamento, já que há a prática da livre concorrência e ainda o fator da oferta e demanda.
— As pessoas tendem a explorar o próximo superfaturando produtos ou serviços. A questão dos postos, que foi o principal, é que todos aumentaram os preços posteriormente a greve e ao desabastecimento. Assim, foi feito a autuação nos locais onde a denúncia procedia. Agora isso pode gerar um processo administrativo e até multa — detalha.
O alto número de ocorrências de preços majorados também se enquadra, segundo Caroline, no comportamento de manada, mas nesse caso para o lado negativo. É algo, segundo ela, baseado na emoção e também na impulsividade, quando se adota comportamentos que, normalmente, não se teria ou, então, teria em menor escala:
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— É assim com o egoísmo. O consumidor, para se proteger, tenta comprar o máximo que pode. O dono do estabelecimento também pode perceber no aumento de preço uma forma de se preservar e garantir sua sobrevivência. De qualquer forma, é um comportamento questionável.