Todas as segundas-feiras à tarde, três duplas de “doutores” visitam o Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis. Vestidos de palhaços, eles brincam, cantam e dançam durante cerca de três horas com as crianças internadas em todas as alas, do pronto-socorro à unidade de tratamento intensivo (UTI). São os (A)Gentes do Riso, uma trupe de nove atrizes e seis atores que desde 2011 leva alegria aos pacientes mirins – e, por tabela, alento aos pais e descontração aos profissionais da saúde.
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– Vamos tratar do que está bem, da dor os médicos já estão cuidando. Muitas vezes, conforme a faixa etária, a criança nem entende o que tem. Mas ela está sempre ligada na vida, e é isso que a gente estimula – diz Débora de Matos, que interpreta a doutora Esmeralda.
Em sete anos de atuação, o grupo calcula que já se apresentou para 77 mil pessoas – ou sorrisos, como a plateia é contabilizada. Para a atual temporada, iniciada em setembro de 2017, a estimativa é de arrancar 12 mil. De 2011 a 2014, o projeto foi viabilizado por meio do patrocínio de empresas via leis de mecenato. Em 2015, a verba veio de financiamento coletivo. A partir de 2016, voltou a ser patrocinado pela Lei de Incentivo à Cultura de Florianópolis.
O projeto nasceu dentro da Traço Cia. de Teatro e reúne também integrantes de outras companhias que viram na palhaçaria uma técnica para evoluir como artistas. O primeiro esboço do que viria a se tornar os (A)Gentes do Riso ficou pronto em 2004, mas não saiu do papel. A proposta decolou mesmo a partir de 2008. Neste ínterim, eles foram se aperfeiçoando em apresentações em locais não convencionais, como ruas, praças, abrigos de menores, presídios, qualquer lugar que não um teatro. Foi quando brilhou a centelha: por que não em um hospital? Para isso, tiveram a orientação do ator e diretor Esio Magalhães, um dos precursores da arte da palhaçaria em ambientes hospitalares no país. Com ele, aprenderam o mais difícil: que se preparar para trabalhar nessas condições é, sobretudo, planejar-se para não fazer o show previsto.
“O palhaço se dedica, treina, se aprimora nas atividades mais inúteis que podemos pensar como, por exemplo, jogar três, quatro ou cinco bolinhas para cima até domá-las, tocar uma música num pente ou se especializar na arte de cair no chão. (…) Quando o palhaço vai para o hospital, ele deve estar pronto para abrir mão do que tem preparado para apresentar e se lançar na relação com toda disponibilidade para potencializar o momento que ele e o seu público estão vivenciando”, ensinou o mestre.
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– São pessoas que não estão ali para nos assistir, nós é que vamos até elas. Cabe a elas nos aceitar ou não – sintetiza o doutor Amanito Matutino, personagem de Khalid Prestes.
A terapia do riso foi inspirada no trabalho do médico norte-americano Hunter “Patch” Adams, que na década de 1960 percebeu que sorrir fortalece o sistema imunológico e acaba contribuindo com o processo de recuperação dos pacientes. A história ganhou os cinemas em 1998 com o ator Robin Williams no papel principal. Na trama (Patch Adams – O Amor É Contagioso), os métodos do doutor entram em conflito com os adeptos da medicina tradicional. No Joana de Gusmão, a técnica foi bem-vinda, até porque segue a linha de humanização defendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os esquetes ocorrem em todas os setores do hospital, exceto os centros cirúrgico e pós-cirúrgico. Feita a acolhida no setor de pedagogia, os palhaços são encaminhados para as demais unidades. A primeira a ser visitada é a oncologia, pois os pacientes dali estão mais suscetíveis a bactérias. Não é permitido, por exemplo, soltar bolinhas de sabão naquele departamento. Na neurologia, eles devem evitar ruídos. Na infectologia e na ala de queimados, é proibido entrar nos quartos.
O cenário e o contexto requerem tanto cuidado que os atores treinam semanalmente até hoje. O palhaço precisa ter a sensibilidade de só usar a parte de seu repertório que será necessária para animar determinado paciente. Cada criança reage à dor de um jeito. Os ensaios, a delicadeza, o profissionalismo, porém, não impedem que, às vezes, a emoção prevaleça – mesmo de forma inesperada. Basta pensar na situação para intuir que é preciso muito autocontrole para não desabar.
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– O nariz de palhaço nos protege. Mas tem horas que é difícil, os olhos se enchem de lágrimas e dá um nó na garganta. Por isso vamos em dupla, um complementa o outro e segura a onda quando o peito aperta. Tem que respirar fundo e continuar – explica Débora.
E nunca é descartada a hipótese de o sorriso recebido em uma semana não se repetir na seguinte. É a menina que deixou o hospital sorrindo porque está indo para casa, enquanto os adultos sabem que ela não iria sobreviver. Ou o menino cujo tratamento foi tão longo que conheceu todos os componentes do grupo. A interação com ele era pela janela. Os palhaços descobriram que o guri gostava de piadas e começaram a escrevê-las nos cartões que distribuem no hospital e a colá-los nos vidros.
– Quando ele morreu, soubemos que foi enterrado com todos os nossos cartões – conta Prestes.
Embora sempre focado no público infantil, não há como não envolver também os pais e os profissionais. De acordo com Amanito, a participação (que não é obrigatória) de médicos e enfermeiros nas brincadeiras estabelece uma relação de igual para igual com o doente. Para a família, que está sofrendo, a presença dos (A)Gentes do Riso é um conforto, uma oportunidade para um respiro. Geralmente, o pai e/ou a mãe fazem questão que o filho acamado seja visitado.
– Os pais tentam desabafar. Às vezes, são eles que a gente precisa levantar – afirma Débora.
Com a criança, é diferente. Ela fica em pé na cama, estica o canudo do soro, tropeça em algum equipamento, mistura choro com riso, está brincando e escapa uma lágrima. Recém-nascidos e bebês mexem mãozinhas e pezinhos, dizem muito com o olhar, lista Paula Bittencourt, a doutora Malagueta.
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– A atitude corporal é de aprovação total. Se estão dormindo, os pais ficam curtindo – completa.
Pessoas e dramas por trás da maquiagem
Integrante dos (A)Gentes do Riso desde o princípio, Paula Bittencourt sempre se surpreende com o “poder mágico” dos atendimentos a crianças doentes. Por mais experiente que seja, a atriz de 35 anos não é imune aos dramas que se desenrolam na frente da Doutora Malagueta, seu alter-ego. Em agosto de 2017, toda bagagem, técnica e preparo foram mais uma vez postos à prova. Por pouco, ela não sucumbiu.
Ao entrar na ala de queimados do Hospital Infantil Joana de Gusmão, deparou-se com um menino de quatro anos no colo da mãe. Calejada, estava habituada com o cheiro forte da unidade e com a visão das feridas provocadas pelas queimaduras. Naquele dia, porém, a premissa de buscar o que “está bem” a traiu. Em vez de os olhos brilhantes da criança, viu apenas dor e sofrimento. Ao colega que a acompanhava, disse que não ia conseguir. E saiu tentando disfarçar as lágrimas.
– Em segundos fui povoada por vários pensamentos. Meus filhos, Deus proteja meus filhos! De repente, senti vergonha de mim mesma. Eu estava pensando só em mim e tinha perdido a noção da minha função naquele momento, estar a serviço do riso, da alegria, da esperança, da generosidade – relata.
Então, voltou e encontrou no olhar do menino “a vida, a beleza, o desejo de imaginar” que havia perdido. E juntos brincaram, saindo por alguns minutos do hospital rumo a um mundo de possibilidades. Passagens como essa fazem parte da rotina dos componentes do grupo. São pais, mães, filhos, esposas, maridos, namorados, irmãos; adultos que levam o ofício tão a sério que fizeram da arte a profissão e da palhaçaria um jeito especial de encarar o dia a dia.
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Paula cai na gargalhada ao garantir que o marido, produtor cultural, apaixonou-se por Malagueta antes de se enamorar por ela. A menina de sete anos nasceu praticamente junto com os (A)Gentes do Riso, e ela se apresentou quase até a hora de parir. Descobriu que queria ser atriz ainda moleca, quando teve que escolher uma atividade extracurricular na escola da cidade natal, Tubarão. Entre a dança e o teatro, preferiu o segundo. E não largou mais as artes cênicas, nas quais se formou na Udesc em 2001.
– Na correria, já fui até buscar minha filha na escola caracterizada como palhaça.
Para a manezinha Débora de Matos, 37, a vocação despertou mais tarde. Sempre achou que trabalharia na área ambiental, cursou engenharia de aquicultura e tudo. Até ser fisgada pelo tablado. Também obteve o diploma na Udesc e tem um filho de sete anos – estava grávida do marido, engenheiro de alimentos, na primeira apresentação do grupo. Com o conterrâneo Khalid Prestes, 34, foi a agrimensura que deu lugar à dramaturgia, descoberta no cartaz anunciando um curso de teatro.
– Viajei bastante, fiz muita perna-de-pau em festa e malabarismo em semáforo – assegura o pai de um menino de seis anos.
Natural de Palmitos, Egon Siedler Jr. começou a encenar na escola e na igreja. Nunca quis ser outra coisa além de ator. Virou o palhaço Jubi por causa da sobrinha, que assim o chamava porque não sabia pronunciar “Júnior”, como era conhecido pela família. Aos 33 anos, não esquece do dia em que mãe e filho o reconheceram em Bombinhas, onde estava se apresentando (vestido a caráter) em um espetáculo de rua. O garoto havia sido “paciente” dos (A)Gentes do Riso e estava curado.
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Muito além do efeito anestésico
Diz o chavão que “rir é o melhor remédio”. Pode não ser o melhor e, com certeza, não é o único. Mas funciona. Um levantamento feito pelo Doutores da Alegria – grupo que há 27 anos diverte o público infantil enfermo em São Paulo e Rio de Janeiro – apontou evidências clínicas de melhora em 85,4% das crianças participantes dos encontros, segundo os próprios médicos que as acompanham. Além disso, 89,2% delas passaram a colaborar mais com os profissionais da saúde, 74% a aceitar melhor os remédios e tratamentos, 77% a se alimentar melhor e 96,3% ficaram mais à vontade no hospital.
Os efeitos não se limitam à plateia. Entre os doutores ouvidos, 45% afirmaram que a presença dos palhaços no ambiente hospitalar contribuiu para que a junta médica discutisse questões delicadas e sensíveis e 49% disseram que a equipe se tornou mais coesa. Até mesmo a relação com a família se modifica: 90% se sentiram mais confiantes com o tratamento e 89% admitiram que começaram a brincar mais com as crianças.
Estudos acadêmicos reforçam os percentuais acima. Pesquisa da universidade de Oxford, na Inglaterra, detectou que rir diminui a dor em até 10%, devido à liberação de endorfina – o “hormônio do bem-estar”, que atua no sistema nervoso central, elevando a autoestima e reduzindo sintomas depressivos e de ansiedade. A universidade de Maryland, nos Estados Unidos, comprovou que risadas baixam a pressão sanguínea, favorecendo as funções musculares do coração, o que equivale a menos risco de infartos.
Números à parte, o impacto dos – e nos – (A)Gentes do Riso é mensurado e sentido na prática. Todos no grupo têm histórias comoventes, como a relatada pela atriz Débora de Matos, sobre uma menina que “estava bem mal”. Na pele da doutora Esmeralda, um dia ela chegou para alegrá-la e a encontrou sedada. Autodefinida como “grande especialista em confusão, com direito à festa, superproteção e um olhar que engole o mundo”, a palhaça não se deu por vencida: pediu para tocar o pandeiro para “entrar nos sonhos dela”.
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– Comecei a bater baixinho e, quando a enfermeira apareceu para dar o medicamento, ficou espantada: disse que todos os indicadores ligados à garota estavam se mexendo e começou a chorar.
Paula Bittencourt, que como doutora Malagueta é “capaz de extravasar milhões de encantos numa montanha russa de emoções”, recorda de outro paciente, um adolescente da ala de psiquiatria que estava sendo vigiado por um funcionário porque já havia fugido. Emburrado dentro do quarto, o guri não queria ver ninguém, muito menos uma dupla de engraçadinhos que acreditava ser possível mudar o seu humor.
– Aí, nós pegamos o violão e perguntamos se ele queria ouvir alguma música. “Rock”, disse. Tinha que ver a cara dele quando tocamos! Era tipo: “Não estou sozinho”.
“Organizado e elegante, dono de uma boa risada e de uma presença que atravessa, encanta e cintila”, Egon Seidler Jr. – ops, doutor Jubi – confessa que sai de cada apresentação como se estivesse sido atropelado, “de tão intenso que é”. Mesmo assim, o retorno é tão gratificante que ninguém pensa em parar.
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– Criança sempre devolve esperança e alegria.