Entre soldados em miniatura e castelos de brinquedo, o menino Nathan* se distrai sobre o tapete da sala de casa, em São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis. O garoto de 12 anos se mudou de São José para a cidade de 5 mil habitantes para viver com a avó e a tia, depois que a mãe foi morta a facadas e o pai acabou preso pelo crime.
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No rastro de dor e sofrimento deixado pelos feminicídios, que mataram 59 mulheres em Santa Catarina ao longo de 2019, crianças e adolescentes como Nathan são provavelmente os mais afetados. Expostos à violência extrema, eles acabam órfãos de mãe e, na maioria dos casos, perdem o pai também – é comum que os autores, quase sempre os companheiros ou ex-companheiros das vítimas, sejam presos ou cometam suicídio. Com o núcleo familiar desfeito, as crianças e adolescentes são amparadas por familiares ou levadas a abrigos, enquanto precisam lidar com o luto e os traumas deixados pela violência.
Embora a Polícia Civil não tenha dados específicos sobre as mulheres vítimas de feminicídio que deixaram filhos órfãos, uma pesquisa focada em crimes conjugais ainda inédita indica que 102 crianças e adolescentes perderam as mães em crimes hoje considerados feminicídios entre 2005 e 2017 na Grande Florianópolis e no Planalto Catarinense. O estudo é desenvolvido pela doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ana Laura Tridapalli.
— A maioria desses crimes ocorreu na frente dos filhos, o que é muito mais cruel. É algo que impacta demais na vida dessas pessoas. É uma situação muito difícil, de muito sofrimento para toda a família, mas principalmente para essas crianças e adolescentes. Com certeza, é algo que vão levar para a vida toda — comenta a pesquisadora.
“Não quero que ele se crie com ódio no coração”
Sentada no canto do sofá da sala de casa em São Pedro de Alcântara, a costureira Marisa*, 57 anos, conta que tem buscado forças para encarar a dor de ter perdido a filha e ao mesmo tempo cumprir a missão de ajudar a criar o neto. Apesar de ainda bastante abalada pela tragédia que arrasou a família seis meses atrás, a mulher tenta deixar a emoção de lado quando o assunto é a criação do garoto.
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— Só não quero que ele cresça com ódio no coração — comenta a avó, enquanto dirige os olhos para o menino, que brinca no chão diante dela.
A história da mãe do garoto serve para ilustrar a realidade dos crimes de violência doméstica no Brasil. Depois de um casamento de duas décadas, ela decidiu se separar do marido por não aguentar mais a rotina de agressões físicas e psicológicas. Inconformado com a decisão, o homem passou a ameaçá-la de morte. Em plena luz do dia, a mulher foi morta a facadas pelo ex-companheiro na Beira-Mar de São José, em maio do ano passado.

— Olha, moço, foi muito sofrimento. Ele batia nela, chegou a quebrar a perna dela. Batia com toalha molhada pra não marcar. O menino via tudo. Pedia pra dormir na minha casa, preferia dormir no chão da minha casa do que ficar com a mãe e o pai — relembra Marisa.
Depois do feminicídio, a guarda do garoto passou provisoriamente para a tia, com quem o menino vive atualmente, junto da avó. Ela conta que o garoto tem tido acompanhamento psicológico todas as semanas, oferecido gratuitamente após decisão judicial, o que tem contribuído para que ele consiga lidar com a situação. Ainda assim, ela diz se preocupar com reações violentas demonstradas por ele em algumas situações e teme pelas consequências da tragédia na vida do neto.
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— Outro dia, ele me disse assim: “vó, sinto falta da mãe beijar a minha cabeça, sinto falta do cheiro dela”. Mas ele quase sempre é muito calado, guarda as dores pra ele. Digo pra ele que pode dizer o que está sentido, que está tudo bem, que homem também chora — conta a avó.
“Romper ciclo da violência é um dos desafios”, diz psicóloga
Atuante no Centro de Referência de Assistência Social de Florianópolis (Cras), a psicóloga Sandra Regina da Silva Coimbra destaca que o acompanhamento profissional é essencial no apoio a crianças e adolescentes que enfrentam situações de feminicídio nas famílias, tanto para que elaborem o luto em relação à morte da mãe, mas também para que não repitam ações violentas.
— Na maioria das vezes, a violência é um fenômeno que se repete de geração a geração. O profissional precisa interromper o ciclo da violência. A gente precisa demonstrar para a criança que existem outras formas de relacionamento que não são violentos. É normal que haja alguns transtornos no começo, agressividade, isolamento, depressão. Por isso o acompanhamento é tão importante.
Sandra Regina também destaca a importância do papel daqueles que ficam com a guarda das crianças. A psicóloga comenta que cabe a essas pessoas transmitir afeto e falar sempre a verdade, sem, no entanto, expor detalhes dos crimes.
— A criança precisa se sentir amada, acolhida. Ela precisa ter condições de expressar os sentimentos. Porque o problema não é sentir raiva, mas é o que a gente faz com essa raiva. Então, é fundamental que a guarda fique com uma pessoa acolhedora, tolerante, que esteja ciente de que a criança vai apresentar uma série de dificuldades.

Conselho tutelar tem papel crucial
O atendimento a crianças e adolescentes em famílias onde há casos de feminicídios é feito inicialmente pelo Conselho Tutelar da cidade em que ocorre o crime, conforme estipula o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Trata-se de um procedimento padrão, que ocorre sempre que há uma situação de violência envolvendo menores de idade. São os conselheiros quem vão decidir sobre o destino inicial dos envolvidos.
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— A família nuclear, composta pela avó ou avô, tio ou tia, ou mesmo o pai, quando não for ele o causador do crime, tem preferência neste momento. Caso não haja nenhum familiar, a criança é encaminhada para um serviço de acolhimento, que são os abrigos – explica a secretária de Assistência Social de Florianópolis, Maria Cláudia Goulart da Silva.
— Nesses casos, a criança vai para uma casa de acolhimento onde vai ser atendida e acompanhada pela assistência social, até que surja alguém da família extensa. Se não surgir ninguém, o juizado faz um estudo social e provavelmente ela seguirá para adoção – complementa a conselheira tutelar Alessandra Beatriz da Silva, que atua na região continental de Florianópolis.
Os conselheiros tutelares também são responsáveis por encaminhar as crianças e adolescentes para atendimento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), para acompanhamento posterior da família envolvida. O tratamento psicológico das crianças depende de cada caso, e em geral é feito nas unidades de saúde. Situações de alta complexidade podem ser encaminhadas ao Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi).
— Muitas famílias acabam não esperando a saúde pública e vão a clínicas com preços sociais. Acabam optando por essa alternativa para não ter que esperar — acrescenta a conselheira tutelar Alessandra Beatriz da Silva.
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*Os nomes Marisa e Nathan são fictícios, atendendo ao Manual de Jornalismo da NSC Comunicação.