*Por Danielle Jacon Ayres Pinto
É fato que o mundo do século XXI aproximou os países e suas demandas, mas nem para os analistas internacionais mais otimistas a saúde passaria a virar um tema de alta política em 2020. Mas virou e agora nós, humanidade, estamos no olho do furacão.
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No jogo da política internacional o dinheiro e as armas sempre foram os recursos centrais para definir quem seria o Estado poderoso do sistema, aquele que guiaria todos os atores mundiais no caminho do desenvolvimento e do progresso. Mas quando elementos imprevisíveis se colocam na cena política, quem se adaptar melhor passará a ser o controlador desse complexo de poder que rege vidas e destinos ao redor do globo.
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China e EUA entenderam bem essa dinâmica. E o que deveria ser uma luta global conjunta contra a maior emergência sanitária mundial dos últimos 100 anos, virou uma disputa ferrenha por quem controlará como essa cena da história mundial será contada no futuro.
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A China, epicentro inicial desse processo pandêmico, flutua entre uma realidade de eficiência e sombras. Ao mesmo tempo que o gigante asiático é capaz de construir hospitais imensos em dias, mostra-se incapaz de jogar luz sobre a efetiva realidade que assola o país nessa pandemia. Quantos morreram realmente? Quanto tempo tais casos e mortes foram ocultados do mundo e dos organismos internacionais? Como realmente surgiu esse vírus? Foi num mercado ou num acidente laboratorial em Wuhan?
Essas perguntas sem respostas alimentam teorias da conspiração de todos os tipos, mas isso é o que menos importa na realidade da política internacional. A falta de resposta mostra, nesse comportamento chinês, que o importante não é combater a pandemia, mas sim construir uma retórica de sucesso, para justificar o controle internacional do sistema no pós-pandemia.
Mas engana-se quem pensa que a retórica dos EUA é diferente da chinesa. Os norte-americanos estão sofrendo na pele a imprudência de seu governo em ignorar a pandemia. Enquanto escrevo esse texto, mais de 2 mil norte-americanos perderam suas vidas para o Covid-19. Frente a esse cenário, imaginamos: o país mais rico e poderoso do mundo vai nos guiar nessa batalha épica do nosso tempo, vai investir em cooperação internacional (ideia tão apregoada pelas ditas democracias ocidentais), vai mostrar que a transparência da democracia será o remédio para curar a saúde e a política oportunista. Ledo engano.
O presidente norte-americano anunciou horas atrás que irá cortar os recursos que o país destina a OMS (Organização Mundial da Saúde). Motivo? A organização não alertou o mundo sobre a gravidade do vírus, fazendo com que não fosse possível preparar com eficiência os sistemas de saúde nacionais e, assim, evitar mortes desnecessárias. Mas por que a OMS faria isso? Divaga o presidente dos EUA: porque tem interesse em ajudar a China.
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Nessa hora realizamos o que está ocorrendo: o que importa não são as vidas perdidas, as histórias mal contadas sobre o que efetivamente provocou essa pandemia ou a ineficiência política de alguns governos que desacreditaram da capacidade mortal desse vírus. O que importa é vencer a batalha da retórica, pois quem sair vitorioso desse embate determinará como o mundo será guiado após todo esse turbilhão passar. Poder em estado puro.
Enfermos e mortos nunca foram elementos centrais dessa história: são somente efeitos colaterais para tais atores internacionais (perversidade típica da Realpolitik). Por mais que saúde permeie momentaneamente o cenário político internacional, o embate pelo controle do sistema ainda continua sendo o mote principal dos países poderosos, infelizmente.
Todavia, Winston Churchill tinha uma frase excelente para traduzir a vontade dos países em ter poder no sistema internacional: “O preço da grandeza é a responsabilidade”. Que falta faz Winston em tempos tão estranhos como o que vivemos.
* Danielle Jacon Ayres Pinto – Professora de Política Internacional e Segurança da UFSC, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea – GEPPIC
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