*Por Danielle Jacon Ayres Pinto
O dia D das eleições norte-americanas causam alvoroço mundial. Há tempos não era visto um movimento político interno que pudesse, na opinião de muitos analistas, ser a chave para a condução da política internacional nos próximos anos. Mas será que isso é verdade?
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Trump vem, ao longo dos últimos quatro anos, demonstrando de forma bastante rudimentar o que republicanos sempre tiveram como mote do partido: America First. Num conservadorismo protecionista com cheiro de mofo, Trump mostrou ao mundo que é possível defender posições retrógradas e, mesmo assim, ser seguido por uma legião de pessoas. Mas qual a novidade na posição do republicano? Nenhuma.
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A única coisa que víamos em seus congêneres era um pouco mais de verniz no trato, mas não uma posição diferente da do atual presidente dos EUA. Bush pai e Bush filho, últimos presidentes republicanos, que o digam: seus governos tivemos duas guerras no Iraque, a Guerra do Afeganistão e uma luta desgovernada contra os terroristas da Al Qaeda. Tudo isso à revelia da comunidade internacional, ou seja, uma vontade própria dos EUA pela manutenção de poder e controle do sistema. Sempre com a América em primeiro lugar.
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Com Biden não parece ser diferente. Os democratas são reconhecidamente mais afeitos aos preceitos dos direitos humanos – ao menos aos de primeira geração – e a um mundo mais interconectado e multidimensional. Todavia, a proposta para a manutenção do poder e do controle da agenda internacional por parte dos EUA não munda com Joe Biden. Muito pelo contrário: ela pode aumentar e ser entendida como uma benesse num claro movimento de soft power, ou seja, de um controle que vai além da força e cria uma percepção de identidade.
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Quando essa retórica identitária é forte o suficiente, não se consegue mais ter senso crítico para perceber que muitos discursos que trazem pontos positivos e ganhos no curto prazo, produzem no longo prazo uma dependência incapaz de ser superada. Foi assim que Obama, tido como um dos melhores presidentes dos EUA, manteve seu país na liderança mundial sem que percebêssemos que pessoas continuavam a ser torturadas em Abu Ghraib, que líderes mundiais estavam sendo espionados por sistema estatais de inteligência e que muitas violações estavam sendo cometidas pelas forças armadas dos EUA em lugares onde não deveriam mais estar, como o Iraque.
A maneira de agir é distinta, obviamente, mas o mote que a guia não. Com Trump ou Biden, continuaremos nós, países periféricos, em segundo plano no embate de poder do sistema internacional. Nesse sentido, perdemos todos quando a eleição se pauta pelo opção menos pior e não por um cenário de autêntica mudança de comportamento, se é que isso pode ser possível.
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É óbvio que não devemos ser ingênuos de acreditar que a composição política norte-americana não afeta o mundo e suas agendas, mas o fato é que talvez ela afete muito menos do que precisávamos e gostaríamos. Todavia, numa época sui generis como a nossa, onde enfrentamos não só uma pandemia de Covid-19, mas também a pandemia de violência e ignorância provocada por um retrocesso conservador, ter um presidente que ao menos respeite os acordos internacionais firmados, que valorize um espaço multidimensional de interação e que não seja, em último instância, o promotor central do caos já um ganho e tanto.
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Se pensarmos nessa eleição, sob a ótica do Brasil, então o ganho pode ser maior. A vitória do democrata é capaz de enfraquecer um governo que está rompendo todos os tradicionais pilares da política externa brasileira, em prol de um projeto conservador que já nasceu velho e ultrapassado, e que traz ao país mais atraso e dependência.
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Assim, não há muito o que comemorar hoje. Porém, estaríamos todos mais tranquilos se ao final do dia fizéssemos a civilização prevalecer sobre a barbárie. Nela ainda haveria espaço para se lutar por um mundo melhor, mais justo e mais igualitário.
* Danielle Jacon Ayres Pinto – Professora de Política Internacional e Segurança da UFSC, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea – GEPPIC e Vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa – ABED
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