Mais do que mil palavras?
por Carlos André Moreira
Alguns dos temas mais comentados pela sociedade brasileira, alguns dos links mais compartilhados nas redes sociais, alguns dos assuntos que mais provocaram discussão nos últimos tempos tinham como ponto em comum o fato de terem se originado em um vídeo ou uma foto.
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A morte do cinegrafista da Bandeirantes Santiago Andrade, atingido por um rojão em protesto no Rio, gerou uma caça oficial a imagens que identificassem os responsáveis. Um jovem brutalmente espancado, também no Rio, foi preso, nu, a um poste, por uma tranca de bicicleta.
A imagem fez o Brasil encarar a escalada cada vez mais aberta do vigilantismo. Presos no Maranhão chacinaram adversários e filmaram as cabeças decepadas. Um deputado federal, Luiz Carlos Heinze (PP), precisou se explicar após ser gravado dizendo que “quilombolas, índios e gays” são “tudo que não presta”, “aninhados” na Secretaria Geral da Presidência. Quando todo mundo parece ter uma câmera, a imagem, mais do que valer por mil palavras, produz milhares delas.
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Não que a existência de uma “sociedade da imagem” seja novidade, ela já era postulada na obra de Guy Debord A Sociedade do Espetáculo (1967), que previa a substituição do fetichismo da mercadoria pelo da imagem. O que Debord não podia prever em seu tempo era a emergência de uma série de tecnologias que tornariam possível a qualquer um produzir uma imagem instantaneamente, em câmeras compactas ou em celulares, e difundi-la na internet.
Este é um dos elementos que explicam o quanto as imagens têm se tornado catalisadoras de debates públicos: o fato de que hoje elas não são mais produzidas apenas por instâncias “oficiais” como o poder ou a mídia.
– As imagens sempre participaram do social, fossem elas de governantes ou de figuras religiosas. A novidade importante hoje não é a onipresença da imagem, mas as novas práticas de circulação e, sobretudo, de reprodução – diz Paulo Knauss, professor de história da Universidade Federal Fluminense e diretor do Arquivo Público do Rio de Janeiro.
Várias grandes questões foram lançadas no último ano devido à divulgação de imagens que contrariavam discursos, sejam eles oficiais ou de oposição. Uma tentativa de agressão feita por um manifestante a um fotógrafo funcionário da Câmara de Vereadores de Porto Alegre durante a ocupação do prédio, em julho de 2013, primeiramente negada, foi comprovada com a divulgação do vídeo do circuito interno. Por outro lado, a truculência das polícias militares em todo o país foi posta em xeque por flagrantes feitos por milhares de pessoas durante as grandes manifestações de junho.
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– A imagem pauta as discussões porque se você tem a imagem você tem uma prova. E nesse sentido, cada vez mais ela tem servido como prova das fragilidades do Estado e das instituições. No caso dos abusos das PMs, o Estado não tem controle de seus agentes individuais, e agora isso ficou claro. Com a nova tecnologia, o Estado vai estar sempre a reboque da situação, só resta a ele tentar justificar a incompetência e a falta de possibilidade de agir preventivamente – avalia o Isaac Antonio Camargo, doutor em Semiótica pela PUC/SP e professor de fotografia na Universidade Federal de Santa Catarina.
Os casos mais recentes, o do rojão que atingiu o cinegrafista e o da imagem do menino acorrentado a um poste, denunciado pela ativista Yvonne Bezerra de Mello, conseguiram reverter mesmo o entendimento pessimista de que tantas imagens, por toda parte, terminariam por anestesiar a recepção do público. Em ambos os casos, as imagens provocaram impactos A do jovem acorrentado, especificamente, despertou ressonâncias muito claras com outras imagens também significativas presentes no imaginário.
– A maior parte das imagens hoje são quase invisíveis, você olha mas não vê. Algumas, no entanto, conseguem capitalizar toda uma memória visual à qual se atribui um sentido maior. Era impossível não reconhecer naquela imagem de um menino negro acorrentado uma referência visual relacionada com cenas retratadas da escravidão _ comenta Paulo Knauss.
Para a pesquisadora da UFRJ Fernanda Bruno, o que dota uma foto ou um vídeo dessa capacidade de se destacar no fluxo incessante da produção imagética contemporânea é tanto sua carga simbólica quanto afetiva.
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– Em uma breve pesquisa que realizei sobre as imagens dos protestos no Rio de Janeiro, focalizando o fluxo de informações no twitter, era notável que muitas das postagens mais compartilhadas eram acompanhadas de imagens cuja carga afetiva estava atrelada ao corpo presente na rua e suas emoções: imagens de denúncia à violência da polícia; imagens da multidão, imagens de confrontos entre manifestantes e polícia etc – diz a professora, autora do livro Máquinas de Ver, Modos de Ser: Vigilância, Tecnologia e Subjetividade (Sulina, 2013).