Se uma experiência pudesse ser traduzida em números, a tragédia de 2008, em Blumenau, seria assim: 103 mil pessoas atingidas pela cheia e deslizamentos, 20 mil desalojadas, 3,5 mil desabrigadas, 2,1 mil casas destruídas ou danificadas, 24 mortos e 87 feridos. A verdade, porém, é que os impactos daquele episódio foram maiores e ainda estão presente nas pessoas e na cidade. Ao passar pela Avenida Martin Luther e pela Rua Hermann Huscher é quase inevitável a lembrança de um novembro em que os morros pareciam derreter. A chave para reduzir os impactos quando a força da natureza é maior vem do conhecimento.
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Há 35 anos, Blumenau tinha enfrentado episódios difíceis em relação às enchentes, sobretudo nos anos de 1983 e 1984, tanto que aprendeu a identificar os pontos de maior risco para a comunidade e o que fazer quando o nível do rio começa a subir. Porém, contra a força dos morros que cedem e das encostas que deslizam ainda não se sabia como proceder. O município nunca tinha vivido aquilo e, logo, não tinha planos de contingência para guiar as ações. Uma realidade muito semelhante a outras cidades brasileiras, como Nova Friburgo e Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde vidas foram perdidas em tragédias semelhantes a que assolou o Vale do Itajaí há 10 anos.
O poder público tratou de rever os procedimentos sobre desastres naturais. Até mesmo o governo federal se mostrou de mãos atadas diante do cenário apresentado. Surgiu a iniciativa de buscar cooperação com países onde a prevenção e o alerta às catástrofes climáticas são mais avançados. Nasceu então uma parceria com o Japão, um dos países mais modernos do mundo em tecnologia para catástrofes, e que atualmente rende frutos não só para Blumenau, mas para todo o Brasil.
É em um projeto chamado Gestão Integrada de Riscos em Desastres Naturais (Gides), que tem o apoio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica), que muitas das soluções estudadas atualmente em Blumenau se baseiam, assim como foi na década de 1980, quando a agência prestou auxílio ao Estado em projetos de contenção das cheias. Agora o esforço é para trabalhar na prevenção de deslizamentos e no alerta antecipado e certeiro de quando uma nova ocorrência se tornará realidade.
O secretário municipal de Defesa do Cidadão, à época comandante do Corpo de Bombeiros de Blumenau, Carlos Olímpio Menestrina, defende que o maior legado da parceria é a troca de experiências. Para o coordenador do projeto pelo Japão, Kazuaki Kamazawa, a palavra que define a parceria é transferência de conhecimento. Quem acompanhou todo o processo de perto, como a coordenadora de abrigos no município, Juliana Azevedo Ouriques, corrobora a afirmação do responsável pela pasta em Blumenau:
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– O Japão tem realmente essa expertise relacionada a movimento de massa (deslizamentos), que aqui a gente ainda está aprendendo. Então 2008 foi um marco nesse sentido. Antes, todo o planejamento do município era voltado para inundação. Na ocasião, a prefeitura estava finalizando o plano municipal, onde já trazia 17 áreas de risco, mas era algo muito superficial. Com o evento de 2008, foram feitos todos os investimentos, desde a estruturação da secretaria, a criação de uma diretoria de geologia, o AlertaBlu, os programas de prevenção, e nesse sentido o Japão tem uma experiência de muito mais tempo – explica a mestranda em desastres.
O trabalho iniciou em 2013 e encerrou no ano passado. Agora a prefeitura trabalha na finalização e aplicação de seis manuais considerados frutos do projeto cooperativo que conseguiu reunir Município, Estado e União no debate e na construção de propostas que possam atender a realidade local. Durante os 48 meses de ação articulada, servidores municipais de Blumenau foram ao Japão para conhecer as metodologias lá praticadas e prefeitura também recebeu aqui inúmeros técnicos estrangeiros para estudos, análises em campo e apoio ao mapeamento da cidade.
O levantamento geral de todas as áreas do município, que vai apontar onde é considerado ou não área de risco, deve ser finalizado até o fim do ano. O documento irá nortear as estratégias públicas.
– O Japão é um dos países mais desenvolvidos no enfrentamento a desastres. Obviamente que as situações que eles vivem lá são diferentes das que temos aqui, mas muita tecnologia que eles adotam serve para nós também. Por exemplo, o novo mapeamento da cidade, que está quase pronto, a gente usou todas as terminologias e experiência do Gides para que possamos fazer o nosso planejamento. Não dá para pegar o planejamento do Japão e aplicar aqui, tem que aproveitar o que de importante eles têm e adaptarmos para a cidade – defende o secretário Menestrina.
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NOVAS FORMAS DE TRABALHO
Entre os profissionais que atuam nas áreas de Defesa Civil e Geologia da prefeitura é consenso que a troca de conhecimento promovida pelo intercâmbio Japão-Brasil é positiva. Embora muitas questões já vinham sendo aprimoradas internamente pela equipe técnica que ganhou corpo após os deslizamentos de 2008, um novo olhar foi lançado sob o trabalho prestado. Tanto que o projeto chegou a receber o Certificado de Distinção do Prêmio Sasakawa, concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Redução do Risco de Desastres e pela Fundação Nippon, do Japão. A premiação reconhece iniciativas que contribuem para reduzir a mortalidade e mitigar os riscos de desastres naturais.
Na prática, o projeto proporcionou aos servidores públicos de Blumenau uma nova perspectiva sobre aquilo que já estava sendo feito. Responsável pela coordenação dos abrigos em situações de emergência, Juliana Azevedo Ouriques pontua alguns aspectos que serão aprimorados a partir de agora e que até então não eram observados. É o caso, por exemplo, das rotas de fuga. Os planos de contingência preveem a abertura de abrigos em locais estratégicos nas comunidades, mas traçar um caminho seguro para que as pessoas cheguem até esses pontos não havia sido planejado e agora entra em pauta.
Criar pontos de apoio, registrar o horário da ocorrência e não apenas do momento em que chegou ao conhecimento das autoridades, emitir alerta de evacuação, ter uma nomenclatura nacional para os estágios dos eventos climáticos também estão na lista de prioridades definidas para o que as autoridades chamam de pós-Gides. O trabalho deve seguir até 2022 com a aplicação e atualização permanente dos manuais confeccionados pelos integrantes do projeto, uma vez que os próprios especialistas apontam as mudanças constantes das áreas em virtude da interferência humana e também de adequações necessárias, conforme a realidade de cada região.
O setor de Geologia, criado após o episódio de 2008, é outro beneficiado. Segundo Gerson Lange Filho, geógrafo do município, as metodologias japonesas confirmaram muito do que já se estudava em âmbito municipal, mas ressalta que o Gides auxiliou com informações adicionais, até então indisponíveis. De acordo com ele, isso dá mais segurança aos laudos feitos à comunidade sobre os riscos de cada área. Foi a partir dos conhecimentos compartilhados entre os dois países que os técnicos conseguiram determinar com mais precisão, por exemplo, o alcance de um deslizamento.
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– Já tínhamos conhecimento antes do Gides, de como os processos de deslizamento se davam. A diferença é que o projeto traz uma maneira quantitativa de tentar identificar principalmente a questão de atingimento desses movimentos de massa. De certa forma a gente “engatinhava” na questão de até onde esse deslizamento ia chegar – pontua o geógrafo.
É preciso inserir a cultura da prevenção
Mesmo com todo o conhecimento, informação e tecnologia disponíveis atualmente, controlar a ação humana é o maior desafio.
– A maioria dos eventos que ocorreram durante os últimos anos, diria 99,5 % deles, são induzidos, provocados pela intervenção do homem. Às vezes um muro mal feito, falta de drenagem, material de aterro jogado, lixo na encosta. Fora 2008, tivemos poucos deslizamentos naturais. A gente percebe a necessidade de conscientizar a comunidade para prevenir essas situações – defende o geógrafo do município, Gerson Lange Filho.
A geologia tem a missão de emitir os laudos para construção em áreas com algum grau de risco, bem como de fazer o mapeamento da cidade. São os profissionais desse departamento que apontam os perigos de se fazer uma casa ou um prédio em determinado local e qual deve ser a obra para que um terreno possa ou não voltar a ser ocupado. Com esse tipo de dado a administração municipal se embasa para trabalhar o crescimento ordenado da cidade.
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Antes da criação do departamento de Geologia na estrutura administrativa da prefeitura, essas informações não existiam, aponta Roger Danilo Schreiber, diretor de Planejamento Urbano. Tanto que em 2010, no Código de Zoneamento, as restrições estabelecidas para os proprietários de imóveis foram duras para resguardar a segurança dos cidadãos. Quando os estudos mostraram o que era possível fazer em áreas até então tidas como de risco, as liberações voltaram a ocorrer, desde que obedecidas as recomendações de obras de contenção.
Atualmente, a prefeitura volta o crescimento do município para a região Norte, considerada mais segura no que se refere a deslizamentos. Para isso, entretanto, há o desafio de criar atrativos que levem a comunidade para esses bairros, com a consciência das pessoas para não ocupar áreas inadequadas.
– O planejamento da cidade deve incentivar ocupação de áreas menos suscetíveis a ocorrências como as de 10 anos atrás, onde seja possível aplicar o que a Defesa Civil e Geologia apontam com os conhecimentos a partir do Gides. Por exemplo, dizer o quanto se pode construir em cada área, se há como ter rota de fuga nesse local e que tipos de obras precisam ser executados para tal – argumenta o diretor.
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Blumenau se prepara para qualificar agentes
Em outubro do ano passado, quando houve o encerramento do Gides em Blumenau, uma provocação surgiu para criação da Escola de Defesa Civil. Nos últimos meses, 10 professores da Furb se debruçam na construção de uma proposta que possa ser aplicada não só para o corpo técnico dos municípios do Vale do Itajaí, mas também para a comunidade. Quem coordena o trabalho é Maurício Pozzobon, que trabalhou de 2009 a 2017 na administração municipal e ajudou a criar o setor de Geologia.
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Segundo ele, a expectativa é de que os primeiros cursos sejam oferecidos a partir do segundo semestre de 2019. A proposta, inicialmente, é formação on-line com aulas presenciais práticas, como visitas técnicas. Na visão de Pozzobon, quando se fala de Defesa Civil não se trata apenas do poder público, por isso a importância de levar informações também à sociedade, ressaltando o papel de cada um na prevenção de desastres.
Em longo prazo, explica Juliana Azevedo Ouriques, a ideia é chegar até cursos de graduação e especialização. Hoje a formação dos agentes de Defesa Civil é considerada muito precária, com exigência apenas de ensino médio. Ela aponta que o corpo técnico que atua em Blumenau acabou sendo qualificado por conta da incorporação de profissionais com formação nas áreas afins, como geólogos, geógrafo, meteorologista e assistente social. Pozzobon reforça a importância:
– A intenção de desenvolvimento dessa plataforma é justamente oferecer um serviço de difusão da informação, que é decisivo para melhorar a capacidade de prevenção da sociedade.
Acompanhe a cobertura completa dos 10 anos da catástrofe
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