*Por Nina Siegal

Gante, Bélgica – Hélène Dubois estava frustrada. Era sexta-feira de manhã, apenas algumas horas antes que ela inaugurasse a restauração – que custou US$ 2,4 milhões e muitos anos de trabalho – de um painel de um dos maiores tesouros artísticos do mundo: "A Adoração do Cordeiro Sagrado", também conhecido como Retábulo de Gante.

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Mas a "nova" cara do cordeiro já havia sido vista por milhares de pessoas on-line. Nas 48 horas anteriores, uma comparação de "antes e depois" do painel havia viralizado no Twitter. A "Smithsonian Magazine" afirmou que o novo cordeiro era "assustadoramente humanoide" e os usuários o compararam ao personagem fashionista Derek Zoolander.

"Muita bobagem foi divulgada por tweets absolutamente estúpidos e fora de contexto", afirmou Dubois, enquanto abria a câmara da Catedral de São Bavão, onde o retábulo fica exposto.

Dentro de uma enorme vitrine de vidro, estava a obra-prima de quase 600 anos feita pelos irmãos Hubert e Jan van Eyck, com os detalhes bem definidos e as cores vibrantes e alegres, como devem ter sido quando a obra foi pintada. O trabalho gigantesco, criado a partir de 20 pinturas feitas na frente e no verso de 12 painéis, é estonteante. O rosto do cordeiro, no centro do maior painel frontal, não é maior do que uma noz. "Veja como ele é pequeno", comentou Dubois. As mudanças no rosto do cordeiro realmente foram consideráveis, acrescentou.

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"Essa é a imagem original de van Eyck, que havia sido recoberta por outro pintor para se parecer com um animal passivo e para ter dimensões mais anatômicas. Mas essa era a intenção de van Eyck. Não há nada de bizarro nisso; só não é o que as pessoas se acostumaram a ver e talvez não seja o que esperavam encontrar."

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(Foto: Gael Turine / The New York Times)

A inauguração do painel do cordeiro foi o primeiro evento do que está sendo chamado aqui de "O Ano de Van Eyck", e o retorno do painel central recém-restaurado à catedral é acompanhado por uma importante exposição no Museu de Belas-Artes de Gante, intitulada "Van Eyck: Uma Revolução Óptica", em cartaz até 30 de abril. A mostra exibe 13 pinturas originais de van Eyck – mais da metade das 22 obras conhecidas – exibidas ao lado de cem obras de artistas contemporâneos do fim da Idade Média.

Os painéis externos restaurados, incluindo os que mostram Adão e Eva, serão separados em pares e expostos no museu, ao lado de obras similares ou contrastantes de outros artistas do período, como Fra Angelico e Masaccio. A maior parte da frente do retábulo, incluindo o painel "Cordeiro Sagrado" e os painéis superiores que ainda não foram restaurados, ficará na catedral. (Um dos painéis inferiores originais, conhecido como "Os Juízes Justos", foi roubado e continua desaparecido; é representado por uma cópia.)

"A última vez que dois painéis do retábulo, Adão e Eva, foram exibidos em um museu foi em 1902. Quando voltarem à catedral, estarão distantes mais uma vez. A oportunidade de vê-los tão de perto é extraordinária, porque assim podemos observar todos os seus detalhes maravilhosos", afirmou Frederica van Dam, uma das curadoras da exposição.

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(Foto: Gael Turine / The New York Times)

São os detalhes que podem gerar mais discussões, como já se viu nos debates recentes nas redes sociais. A restauração do retábulo, que começou com um estudo da pintura feito por um grupo de especialistas internacionais, em 2012, revelou que boa parte dele havia sido refeita durante o século XVI, cerca de 120 anos após a pintura original. "Basicamente, estávamos diante de uma obra-prima pintada por outra pessoa", comentou van Dam, em uma entrevista no museu.

O retábulo de Gante foi encomendado para uma capela particular na Catedral de São Bavão, por volta de 1420. Embora os historiadores ainda discutam suas origens exatas, o consenso atual é de que ele foi projetado e desenhado por Hubert van Eyck, que morreu em 1426, e terminada por seu irmão mais novo, Jan van Eyck, por volta de 1432. Ambos os pintores trabalhavam em um estúdio com alunos, de modo que outros pintores provavelmente contribuíram.

Dubois, a restauradora, afirmou que, em algum momento no século XVI, outro pintor – ou um grupo de pintores – decidiu que a obra precisava de alterações. Talvez ele(s) tenha(m) decidido mudar a pintura por razões teológicas – afinal, estava(m) em plena Reforma Protestante e a Igreja Católica estava reescrevendo suas doutrinas no Concílio de Trento – ou porque os estilos de pintura haviam mudado.

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(Foto: Gael Turine / The New York Times)

A pintura toda foi refeita, "não apenas o cordeiro, mas todos os drapeados, a parte de cima da paisagem, o céu e a vista da cidade. E, na parte de trás, cerca de 70% da obra foi pintada por cima".

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"O mais peculiar nisso tudo é que o trabalho foi realizado com um enorme cuidado, de modo que todos os contornos das figuras fossem preservados e as cores fossem reproduzidas com pigmentos de altíssima qualidade. Não se trata de um trabalho feito às pressas", acrescentou Dubois.

Mas os restauradores tiveram a sorte de encontrar uma grossa camada de verniz entre a pintura original e a segunda versão, o que facilitou a remoção e permitiu revelar a obra de van Eyck, contou Dubois. "A cabeça original do cordeiro, por exemplo, estava em ótimas condições. Tivemos de fazer apenas uma pequena restauração devido a uma perda mínima de pintura."

Ainda assim, Dubois e sua equipe passaram cerca de duas semanas removendo a tinta apenas do cordeiro, por meio de um processo extremamente meticuloso para remover todo o pigmento.

"Ele não foi o primeiro artista a pintar o cordeiro dessa maneira. Temos incontáveis exemplos do início da Idade Média e do fim da antiguidade clássica, incluindo mosaicos romanos, que mostram o cordeiro com grandes olhos frontais, observando o espectador e deixando claro que se trata do Cordeiro de Deus", disse ela.

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(Foto: Gael Turine / The New York Times)

Uma vez que ela viu a imagem original do cordeiro surgir ao longo do trabalho, ao contrário da mudança imediata mostrada por imagens de comparação no Twitter, a restauradora conta que não se surpreendeu ao perceber que os olhos estavam voltados para a frente, e que o cordeiro estava muito mais alerta do que na segunda versão.

"Obviamente, é uma imagem mais intensa do que eu esperava. Isso realmente me comoveu. Ficamos habituados ao olhar passivo do cordeiro e, então, somos confrontados com essa visão forte do símbolo religioso de Cristo sendo sacrificado no altar. Aqui, Cristo está consciente de seu sacrifício", concluiu Dubois.

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