A graciosidade e a beleza com que uma bailarina se movimenta num espetáculo, pairando no ar e encantando os fãs de dança é singular. É arte. Há 100 anos, uma outra bailarina atraiu a atenção dos brasileiros. Do mundo. Nada graciosa, ela fez dezenas de milhares de vítimas por aqui. O nome dela: gripe espanhola.

Continua depois da publicidade

> Em site especial, saiba mais informações sobre a pandemia em SC

No Brasil, então com 29 milhões de habitantes, pelo menos 35 mil pessoas morreram pela doença. O eufemismo com a bailaria deve-se ao movimento e à virulência da doença.

— Os médicos diziam que era dançarina por causa da rapidez que ele (o vírus) circulava e porque não tinha um padrão de circular, vertical ou horizontal, a doença era incontrolável — explica a historiadora Heloisa Starling.

Cientista política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela é uma das autoras do livro “A bailarina da morte”, ao lado de Lilia Moritz Schwarcz. A publicação, lançada no último dia 9 pela editora Companhia das Letras, é um contundente retrato do Brasil durante a pandemia de gripe espanhola e investiga a doença que assombrou a humanidade e revela semelhanças com a Covid-19.

Continua depois da publicidade

— A história não se repete, a história é ingovernável, mas o que aconteceu em 1918 teria muito a nos ensinar (para o momento) se nós não tivéssemos deliberadamente apagado a história da gripe espanhola — diz Heloisa.

Em entrevista por telefone, a escritora faz relações entre as duas pandemias no Brasil, traz detalhes e curiosidades históricas da crise em 1918, fala sobre os boatos e as promessas milagrosas de curas, além de apontar o que temos a aprender com o que vivemos agora em época de novo coronavírus. Confira a seguir:

Na introdução do livro, você e Lilia Moritz Schwarcz citam que “depois de 102 anos, novamente um micro-organismo mostrou como somos vulneráveis a despeito dos imensos avanços da tecnologia” e que “não sabemos lidar com a morte”, num misto de descrença, negação, temor e insegurança. Pela pesquisa para o livro, ao que você atribui esse nosso comportamento?

Você tem que pensar duas coisas. Uma é que diante da morte as pessoas em geral têm duas reações: primeiro, você vai negar, tem a angústia. E tem o medo, que é o que faz enfrentar essa situação. Em 1918 e 1919, imagina que você enfrenta uma situação de negação, depois você vai ter que enfrentar essa situação, que a gente não sabe a resposta, que é o medo da morte. E foi isso que o Brasil enfrentou em 1918, de maneira bastante diferente, eu acho, em alguns aspectos do que está enfrentando hoje.

Continua depois da publicidade

Do ponto de vista tanto do governo quanto da sociedade. E por outro lado, essa sensação de você não saber exatamente qual é o inimigo que está enfrentando, porque os médicos naquela época ainda não sabiam que vírus era aquele e como tratar. Era uma doença muito nova. E ela era nova pelo seguinte: os médicos e cientistas desconfiavam que existia vírus, que existia algo menor do que uma bactéria, mas eles não tinham certeza, porque não tinham as ferramentas que iam permitir aos cientistas enxergar o vírus. Isso só acontece na década de 1930, com o microscópio eletrônico. Então, é uma coisa ainda mais assustadora ter um inimigo invisível sob o qual você tem nenhuma informação.

Durante a pandemia da gripe espanhola, também surgiram remédios supostamente milagrosos, como vemos agora. Que relação é possível fazer entre as duas situações?

Em parte, a reação da população é normal. Os médicos não sabiam que doença era aquela, em 1918, não sabiam como tratar, estavam pesquisando enlouquecidamente. Mas não sabiam como enfrentar essa doença, qual o tratamento. Não tinha remédio. Então, a sociedade vai reagir da forma dentro dos padrões culturais ou religiosos. Os médicos só conseguiam receitar remédios paliativos, por exemplo, codeína pra tosse… Aí, as pessoas reagiam dentro do seu universo cultural.

> Grande Florianópolis passa de 500 mortes por Covid-19

Por exemplo, lá em Salvador, as religiões afro-brasileiras foram importantíssimas pra minimizar a gripe espanhola porque elas não só criaram espaços de solidariedade e apoio para as pessoas, como elas têm toda uma farmacopeia, uma farmácia natural, que não cura a gripe espanhola, mas ajuda a enfrentar os sintomas. E teve reações das mais enlouquecidas.

Continua depois da publicidade

> Acompanhe a evolução da Covid-19 em Santa Catarina

Em Santa Catarina, pelo que pesquisei, se usava muitos chás de plantas, coisas que estamos acostumados com a gripe. Teve essa história de que “qualquer coisa vai nos ajudar”. O que não teve há 100 anos foi: nenhum governante receitou remédio que os médicos diziam que não funcionava, como o presidente (Jair Bolsonaro) e o (Donald) Trump (presidente dos Estados Unidos) estão fazendo. E também não teve, até onde nós vimos, nenhuma tentativa de negar a ciência, ou não respeitar os médicos, por parte dos governantes, como acontece hoje. Talvez a gente tenha tido um processo de uma sociedade que se degradou, ou setores da sociedade e da política, se a gente comparar 1918 com hoje.

livro-bailarina-da-morte
Capa do livro que conta a história da pandemia da Gripe Espanola no Brasil (Foto: Reprodução)

O isolamento social também tem uma relação com o que vivenciamos, sobretudo na retomada, com a reabertura do comércio, os campeonatos de futebol, as pessoas indo para as praias etc. Não é uma mera coincidência, certo?

Não. Vamos pegar o exemplo de Santa Catarina. O vírus chega de navio por aí, em Florianópolis, no início de outubro de 1918. O primeiro caso é reconhecido ainda no final do mês, e a cidade para em novembro, porque não tem mais gente. SC está numa situação muito delicada – Florianópolis, inclusive – porque não tinha uma coordenação, não existia o Ministério da Saúde. E o que acontece? Florianópolis para. O cinema fecha, as escolas começam a fechar, as pessoas começam a ficar com medo. Em Florianópolis, tinha uma coisa que achei muito interessante, porque as pessoas diziam umas para as outras que Florianópolis estava sofrendo duas epidemias: a da gripe espanhola e a do medo da espanhola. Porque a cidade parou. E isso no Brasil inteiro.

Só que com uma diferença (para o momento que estamos vivendo), havia um respeito, um cuidado das pessoas muito maior, um sentimento de pertencimento social muito forte. Mesmo que o Estado negue num primeiro momento, as pessoas criam redes de proteção e obedecem aos preceitos básicos de isolamento, mesmo sofrendo com a solidão e a diferença de informações. Em alguns estados, o jornal diz uma coisa, o governo diz outra, os médicos dizem uma terceira, então, isso deve ter dado uma angústia terrível. Caso de Salvador, por exemplo. Mas o isolamento foi fundamental e funcionou muito bem, muitas vezes “decretado” pela sociedade.

Continua depois da publicidade

Entre outros pontos sobre o tema, o livro traz relatos de jornais, à época, que tentavam desmistificar e esclarecer boatos relacionados à doença. Essa prática se mantém até hoje, mas com nome mais sofisticado, as fake news. O que você pode falar sobre isso?

A fake news mais forte da época dura até hoje. Ela é tão forte que engoliu a história: a morte do presidente da República, (Francisco de Paula) Rodrigues Alves, por gripe espanhola. A gente escreveu um capítulo exclusivo sobre isso. Não vou contar o final, porque quero que as pessoas leiam e critiquem.

O que a gente sacou que aconteceu, foi que um jornalista bacana, o Ruy Castro, fez um livro sobre os anos 1920 e fez o que todo jornalista faz. “Olha, gente, que coisa estranha, como é que esse Rodrigues Alves teria morrido de gripe espanhola, se ele tá doente desde o ano anterior? A gripe espanhola mata com quatro, cinco dias, mas ele está doente desde novembro, como ele morreu disso, se ele morreu em janeiro de 1919?” E aí, a gente falou: o Ruy Castro trouxe um ponto aí. Lilia e eu fomos pesquisar.

> Blumenau descarta novas restrições e amplia atendimento a casos suspeitos de Covid-19 nos fins de semana

Continua depois da publicidade

E é impressionante, porque em qualquer livro e qualquer jornal que você abre até hoje, o presidente Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola. Mas não é o que diz o atestado de óbito, nem existe nenhum documento que diz que ele morreu de gripe. A gente reconstituiu o boato. O que aconteceu provavelmente, como ele surgiu e a força dessa fake news é tão grande que engoliu a história. Pensa, 100 anos depois a gente abre um livro de historia e está escrito lá que ele morreu de gripe espanhola. Incrível, né?

heloisa-starling-2
Heloísa é uma das autoras do livro “A bailarina da morte”, ao lado de Lilia Moritz Schwarcz (Foto: Renato Parada, Divulgação)

As fake news vão engolir a história, de novo?

Depende qual (risos). Depende de dois profissionais, principalmente: do jornalista e do historiador. Se nós formos capazes de contar os fatos, não tem jeito. Porque o fato é aquilo que a gente pode ostentar na cena pública e dizer: “Ó, aconteceu assim”. Outra coisa é como é que vou interpretar o fato. Aí, é outra coisa.

Eu, como historiadora, e você, como jornalista, não temos nada a ver com isso. Mas o fato é esse. O fato é X. Se conseguirmos fazer isso, não tem jeito de fraudar a história, de as fake news prosperarem, mesmo que determinados setores da sociedade queiram fazê-las prosperar.

Continua depois da publicidade

A gripe espanhola teve muitos nomes. Por aqui, recebeu essa denominação, porque a Espanha deu o alerta inicial sobre a virulência da doença. Mas ela também recebeu eufemismos, como bailarina, que é usado no título do livro. Por que aconteceu essa “suavização”?

É uma forma covarde de você atribuir ao outro a responsabilidade pela peste. Uma coisa que vem desde a Idade Média. Você dá a peste o nome do outro. Por exemplo, a gripe espanhola na Polônia foi chamada de gripe bolchevique. Na Pérsia, foi chamada de gripe inglesa. E no caso da espanhola, o mundo está em guerra e, na hora que a doença começa a matar os países da Europa que estão na guerra, não querem dizer que eles estão sofrendo com algo que eles não sabem explicar e fazem segredo.

A Espanha não estava, ela era neutra. E quando a epidemia chega na Espanha, há o alerta. Aí, a gripe virou espanhola. O bailarina é porque o vírus tem um movimento de “entra e sai”. Ele dança dentro de você, entra no pulmão e sai. O vírus caminha pela cidade inteira. O vírus atravessa as zonas, ele está o tempo todo bailando, dançando. Os médicos diziam que era dançarina por causa da rapidez que ele circulava e porque não tinha um padrão de circular, vertical ou horizontal, a doença era incontrolável.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, você cita Albert Camus, que diz que “tudo que se pode tirar da peste é memória e conhecimento”. E em seguida, você diz que perdemos a lição da gripe espanhola, sem memória nem conhecimento. O que estamos tirando da pandemia do coronavírus?

Continua depois da publicidade

Só vamos saber se nós formos capazes de criar memória e conhecimento. E aí, nós temos que pensar que criar conhecimento tem a ver com a nossa capacidade de chamar a ciência para o lugar dela, não combinar vírus com política – porque vírus e política são duas coisas completamente diferentes – e aprender a lição do vírus. Porque uma coisa que acontece é: o vírus do corona, como o vírus da espanhola, não cria nada, mas revela tudo.

Revela as desigualdades, quem são as populações mais atingidas, a desfaçatez dos governantes. Nós temos que aprender é: o que o vírus está nos mostrando, para que possamos enfrentar daqui para a frente. A outra coisa que acho importantíssima para a gente aprender com a pandemia do coronavírus é que sociedade queremos ser. Não podemos ser indiferentes à morte de nenhum brasileiro.

O que você tem a dizer para quem vai ler esta entrevista e ainda duvida ou nega a pandemia do coronavírus?

A história não se repete, a história é ingovernável, mas quando a gente olha para o passado, essa pandemia do coronavírus não é a primeira vez que o Brasil enfrentou esse tipo de situação. O que aconteceu em 1918 teria muito a nos ensinar se nós não tivéssemos deliberadamente apagado a história da gripe espanhola. E teria a nos ensinar no sentido de que não é algo para se repetir. E uma das coisas que esses 100 anos mostram é que a história não se repete, mas a sociedade brasileira se degradou.

Continua depois da publicidade

> Coronavirus: sintomas, tratamento e como prevenir

Não existiu em 1918 nenhuma das atitudes de negação, de descaso, de desrespeito aos mortos e de indiferença que setores da sociedade fazem hoje. Essa é a lição que nós precisamos aprender com o coronavírus.