Médico, educador, palestrante, escritor e apresentador de televisão brasileiro. Há mais de 25 anos o paulistano Jairo Bouer ganhou projeção nacional ao falar sobre sexualidade com o público brasileiro, seja na TV, rádio, jornais ou com conteúdos publicados na internet.

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Há a aproximadamente 15 anos, ele trocou a selva de concreto e aço pela Ilha da Magia. Foi da residência dele na Lagoa da Conceição, ao lado dos cachorros de estimação, que, por telefone, em uma segunda-feira fria, com vento e o céu encoberto por nuvens que ele atendeu à reportagem.

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No bate-papo, Bouer falou sobre as mudanças nos relacionamentos pessoais durante a pandemia, da necessidade do toque e do afeto num período como esse, sobre a vida sexual dos brasileiros e outros aspectos comportamentais em meio ao isolamento social.

Confira na entrevista a seguir:

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As relações humanas mudaram nos últimos três meses. Muitas pessoas não ganham um beijo ou um abraço há meses, por conta da pandemia da Covid-19. Como a falta desse tipo de contato e afeto pode influenciar no comportamento das pessoas?

Sem dúvida nenhuma a pandemia mudou a vida de todo mundo, a gente tem quase três meses de restrição de contato social, de isolamento social, né. A grosso modo, a gente pode dividir a população em dois grandes grupos: quem está casado ou junto com alguém, e quem não está. No primeiro grupo você tem uma intensificação do contato, as pessoas estão mais tempo juntas. Isso pra quem tem uma parceria, ou mora junto, ou pode passar junto uma boa parte do tempo. E aí, essa intensificação pode ser boa ou ruim. Pode ser boa por você ficar mais perto de quem você ama. E pra quem está junto, mas não está bem, é um período bem complicado. Imagina se você está num relacionamento complicado, em que com a rotina do dia a dia você tem menos tempo para pensar o que está acontecendo com vocês e, de repente, vocês se dão conta que tem que ficar junto no mesmo espaço o tempo todo. Das duas uma: ou você resolve as questões que estão atrapalhando, ou é uma grande chance de terminar.

Pra quem não está junto, por mais que tenha a tecnologia, mesmo fazendo videochamada, telefonando, trocando mensagem, não é a mesma coisa. E isso realmente tem um impacto bem grande na vida das pessoas. A gente sabe que o toque é muito importante para o ser humano. E não só para o ser humano, o tocar um no outro, até os animais, é um comportamento apaziguador, tranquilizador. Ele libera uma série de substâncias que tem a ver com o bem-estar. Então, a gente sente falta. Quando você não tem esse toque, obviamente você sente falta. E aí, conversando com as pessoas você percebe. As pessoas estão mais angustiadas, estão mais tensas, mais ansiosas. Estão se sentindo mais sozinhas, têm mais quadros de ansiedade, depressão, estresse. Para além do isolamento, isso tem a ver com a dificuldade de proximidade com alguém, de toque em alguém. De abraçar. De afeto. Não necessariamente toque de cunho sexual, falo de intimidade mesmo.

Essa distância, essa dificuldade de contato físico, é ainda mais importante para o jovem. Eles são mais sociais. Os adultos e os mais velhos tendem a restringir ou diminuir a interação social. O jovem é muito social e muito físico, ele tá sempre se tocando, tem grupos grandes na escola, na praia, nos clubes. Essa coisa de ficar distante é ainda mais pesado para os jovens.

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Um artigo publicado na revista especializada The Journal of Sexual Medicine aponta que as pessoas estão fazendo menos sexo durante o isolamento social no Reino Unido. Com a experiência de quem está há mais de duas décadas na grande mídia nacional, popularizando as informações sobre sexualidade, você acredita que esse comportamento se repete no Brasil?

Na minha opinião, quem está casado, quem está morando junto… três meses depois do isolamento, não sei. Quando a gente começou o isolamento, os casais ficaram mais tempo junto, então tenho a sensação, sem nenhuma investigação ou pesquisa, que as pessoas tiveram a possibilidade de ficar mais tempo com parceiros e parceiras, e para aqueles relacionamentos que estão bem, ou que não estão tão bem mas querem aproveitar a oportunidade para melhorar, acho que as pessoas fizeram mais sexo. Até porque tinha menos coisa para fazer naquele primeiro momento. No primeiro mês de isolamento.

O que acontece? Os casais começam a ficar mais tempo juntos, e aí para o bem ou para o mal, alguns desgastes podem se intensificar. A gente tem visto, principalmente as mulheres, reclamando de uma sobrecarga grande, maior até do que no dia a dia, em função do acumulo de trabalho doméstico, mais questão profissional, mais a responsabilidade sobre os filhos, que estão em casa e fazendo o ensino à distância. E isso, muitas vezes, precisa de um tutor, de alguém para ficar de olho. E além de tudo isso, tem as questões básicas de cuidar da saúde física e mental dessas crianças.

Os casais estão mais sobrecarregados, principalmente as mulheres. E aí, se você está sobrecarregado, estressado, angustiado, enfim, triste, as chances de você conseguir fazer sexo, e um bom sexo, diminuem. A sensação que tenho é que para os casais que estão juntos, no primeiro mês, aumentou (a quantidade de sexo). Para os solteiros, diminuiu. Principalmente para aqueles que obedecem as medidas de restrição e isolamento social. Agora, depois de três meses, que os casais estão mais tempo juntos, têm uma série de desgastes do dia a dia, não sei dizer. Vai depender muito do casal. O que a gente sabe é que alguns países que estão flexibilizando o isolamento há um recorde de divórcios. O que pode apontar que quando as coisas estavam em condições normais de temperatura e pressão, de segunda a sexta-feira trabalhando e final de semana ficando juntos, estava tudo bem. Mas a partir do momento que a gente tem que ficar junto de segunda a domingo, sem interrupção, se a coisa não está bem, a chance de piorar é grande.

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Temos os baby boomers e as gerações X, Y e Z… Há quem diga que daqui a alguns meses veremos nascer a geração “quarenteners”, os bebês concebidos nesse período de isolamento social. Teremos mesmo?

Classicamente, falo de uma situação dos animais em geral, quando passam por uma situação de mais estresse ambiental, até como uma forma de garantia da continuidade da espécie, as espécies tendem a produzir mais dependentes depois que você passa pela fase mais crítica. Obviamente que para o ser humano, você tem que dar um desconto para tudo isso. A gente não é tão biológico assim. A gente tem as questões comportamental e emocional envolvidas.

No fim da Segunda Guerra tivemos um aumento da população, uma geração, a baby boomers. Cenário de crise, situação econômica brava também, depois que passa a fase aguda, você tem o aumento de nascimentos. Aqui, acho que as pessoas estão mais tempo em casa, e, em teoria, no começo da quarentena quem estava casado fez mais sexo. Depois, não sei. Em teoria, a gente podia pensar que talvez tivéssemos uma geração que fosse nascer a partir da quarentena. Porém, recebo muitas perguntas de mulheres que estavam planejando a gestação e que estão assustadas. “Você acha que é o melhor momento para engravidar?”. Digo: “Acho que não. Se você puder escolher, espera mais um pouco”. Tendo a achar que este ano a gente vai ficar numa situação em que não terá um retorno à plena normalidade. A gente vai continuar com restrições sociais, quanto mais a gente puder evitar de passar perto de serviço de saúde, que não for necessário, acho mais seguro, enquanto a gente não tem um tratamento efetivo, uma vacina, uma método de prevenção. Possivelmente, ano que vem devemos ter uma situação melhor.

Não sei se imediatamente a gente vai ter os “quarenteners” aí. A gente vinha numa queda importante na taxa de natalidade, talvez aumente, dê uma animada. De novo, no chutômetro, não creio que vamos ter um crescimento muito grande, não.

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Há algum tempo fala-se sobre o isolamento digital das novas gerações, pelo fato de muitas pessoas estarem ligadas umas às outras on-line, mas distantes fisicamente. De que forma a pandemia pode ajudar a mudar isso?

A gente vinha reclamando muito disso, né? Que as pessoas estavam muito digitais e menos analógicas. Mais no on-line, menos no físico. De alguma maneira agora, a gente foi obrigado a reforçar esse comportamento. Quem estava bastante on-line, ficou mais ainda. Acho que a gente vai perceber que o on-line é ótimo para uma série de coisas, até para a gente conseguir efetuar contatos, mas ele não substitui o contato físico.

É muito importante para a gente socializar. Então, não acho que a gente vai virar uma sociedade 100% intocada e digital. Acho que a gente vai selecionar, e a gente está selecionando mais os contatos físicos, os contatos com as pessoas que a gente gosta, que a gente quer falar, que tem saudade. Mas acho que não tem muito esse risco de virar uma geração, ou passar por um momento que a gente vai ficar só digital. E até para os mais jovens, de que essa geração é cada vez mais digital, esse momento é importante para eles perceberem o quanto o fora do digital faz falta.

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Vencida a pandemia, Bouer acredita que cada pessoa terá uma forma particular de lidar com os ensinamentos desse momento de crise (Foto: Lucas Lacaz Ruiz, Folhapress)

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Como o senhor acredita que sairemos da pandemia como seres humanos?

Tem gente que acha que vamos sair altamente transformados, mudados, que o ser humano vai ser um antes e outro depois da pandemia. Tem gente que acha que vai ter um grande momento de catarse coletiva. E os mais céticos que acham que não vai acontecer nada, que a galera está só esperando isso tudo acabar para voltar a ser o que era.

E o senhor está em qual grupo?

Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Tenho captado reações das pessoas, que não sei se são reações só transitórias ou que vão se manter. “Ah, quando tudo isso acabar, não vou voltar a trabalhar do jeito que eu trabalhava. “Vou trabalhar muito mais a distância”. “Vou fazer as coisas que gosto”. “Vou viajar mais, não vou deixar para amanhã”. “Vou prestar menos atenção menos em mim e mais no coletivo”. “Vou ficar menos individualista”. A gente uma série de pessoas e grupos com esse tipo de reação. Se é uma coisa reativa e que vai ser facilmente dissolvida quando a quarentena acabar ou não, eu não sei. O meu feeling é que não vamos, enquanto sociedade, passar por uma transformação brutal, mas também não acho que a gente vai cair 100% negando ou querendo negar tudo o que aconteceu. Acho que cada um de nós vai achar o seu meio termo. Algumas pessoas vão ficar mais impactadas, assustadas, e outras vão ficar menos. Alguns especialistas escrevem que talvez a gente sofra o risco de uma grande síndrome de estresse pós-traumático coletiva, que você demore a conseguir voltar ao normal, mesmo depois de aliviada a situação. Com resultados imprevisíveis.

Qual foi a pergunta ou dúvida mais excêntrica que você já ouviu sobre sexo?

Certamente tiveram várias. Quando você começa a trabalhar com sexualidade, você amplia muito a tua capacidade de entender as pessoas. Elas são muito particulares. A questão do desejo de cada um é uma coisa muito particular. O que me chama um pouco a atenção são pessoas que têm algumas formas de desejo que evolvem o sofrimento do outro. “Pra eu ter desejo, eu gosto de ver o outro sofrer”. E arruma um complemente diferente: tem gente que gosta de sofrer para conseguir ter desejo. Quando essas combinações se fecham, fico mais atento, diante das possibilidades tão grandes e variáveis do ser humano. O teu prazer depender do sofrimento do outro, e o outro te complementar no sentido de que para ele ter prazer e te dar prazer, ele topa o risco de sofrer.

Qual é a reação das pessoas quando elas o encontram em algum lugar público? São expansivas e já vão perguntando algo ou mais tímidas e se retraem?

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Lá atrás, quando a gente começou esse trabalho, na MTV, pra a geração que via muito a gente, os jovens na época, acho que era. Hoje é meio normal. Tem tanto recurso digital, que as pessoas mandam as perguntas sem se expor. Às vezes, lá atrás, tinham umas pessoas que me abordavam na rua, ficavam perguntando no supermercado, tal. Hoje em dia é tão fácil você mandar um e-mail, entrar na rede social e mandar uma mensagem sem se expor.

Para finalizar, que recado o senhor deixa para quem está lendo a entrevista?

A gente está num momento particularmente complicado em relação à pandemia aqui no Brasil. Há quem diga que a gente não chegou ao pico ainda, há quem diga que a gente já está perto do pico, mas de qualquer jeito hoje o Brasil é o epicentro da pandemia. A gente está numa situação sanitária ainda complicada. Juntando-se a isso a gente tem um país que tem uma gordura econômica para cuidar da população menor do que países desenvolvidos. A gente também tem uma crise econômica instalada, que vai perdurar por algum tempo, e além disso a gente tem uma crise política importante, com uma polarização que há muito não se via, acho que até pior do que na eleição (de 2018).

A gente tem a infelicidade de combinar crise sanitária, econômica e política. A gente está num momento complicado. As pessoas estão mais tensas, irritadas, sobrecarregadas. De um lado, as pessoas sabem que têm um risco. Por outro lado, a maior parte das cidades começou a flexibilização. E muitas vezes as pessoas ficam nessa ambiguidade: “preciso sair, preciso resolver, preciso trabalhar”, mas ao mesmo tempo “tenho medo, preciso me proteger”. Essa ambiguidade gera medo. E isso impacta na qualidade das nossas relações afetivas e, muitas vezes, na qualidade da nossa vida sexual. Pra muita gente é difícil ter prazer num cenário desses. Pra outras pessoas é complicado tocar uma relação afetiva, tocar uma relação amorosa.

Isso vai passar, é uma questão momentânea, infelizmente vai durar um pouco mais do que a gente gostaria. Não acho que a gente vai virar a chavinha e vai voltar para a vida exatamente como ela era. A gente vai passar por uma adaptação.

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