O dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues disse certa vez que “o Brasil é muito impopular no Brasil”. Parece que ele estava certo quando ouvimos as opiniões do sociólogo Domenico de Masi sobre o país. Italiano, professor de sociologia na Universidade La Sapienza, em Roma, e autor de diversas obras em que analisa a era pós-industrial, nosso presente e nosso futuro, ele é um apaixonado pelo Brasil. E um inveterado otimista.

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Não por acaso, é cidadão honorário do Rio de Janeiro e compreende muito bem a nossa abrasileirada língua portuguesa. Um defensor do que chama de um Brasil “autêntico e saudável”, que respeita e ressalta a própria cultura.

Aos 80 anos, Domenico de Masi é um dos grandes influenciadores do pensamento da atualidade. É autor da teoria do ócio criativo, que propõe uma melhor combinação entre prazer, trabalho e aprendizado. Em suas obras, defende a libertação de amarras como as longas jornadas e sugere o trabalho a distância, o “teletrabalho”, como caminhos para alcançar um desenvolvimento com mais justiça social e, por que não, felicidade.

O Brasil é um reiterado exemplo nas obras do sociólogo e foi um dos principais assuntos que ele tratou nesta entrevista exclusiva que concedeu ao Diário Catarinense. Por telefone, o bem-humorado Domenico de Masi falou do nosso momento político e alertou para o Brasil pós-Lava-Jato: “Depois da Mãos Limpas tivemos Berlusconi”, cutucou.

Mundo, política, trabalho, tecnologia, amor e sexo. Domenico de Masi expõe com bom-humor e sem amarras a maneira como enxerga o mundo. E nos brinda com a perspectiva de que caminhamos para uma sociedade melhor. Ao menos, em sua otimista visão sobre a vida.

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* Colaborou Márcia Grazziotin, professora do Núcleo de Estudos de Línguas e Literaturas Estrangeiras da Univali

O senhor acredita que ainda há espaço para otimismo no Brasil?

O Brasil é universalmente otimista. De qualquer forma, eu creio que cada brasileiro sabe que sairá da crise e conseguirá obter um país melhor, porque as grandes qualidades dos brasileiros são a solidariedade, a sensualidade, a espontaneidade. São todas qualidades que pressupõem otimismo.

O senhor já disse em outras oportunidades que o Brasil é um exemplo para o restante do mundo. Continua sendo, apesar de todos os problemas?

Os problemas do Brasil são a violência, a distância excessiva entre ricos e pobres e a corrupção. E estes problemas persistem em todo o país. Neste momento está se fazendo uma grande limpeza em relação aos corruptos, e eu espero que isso dê condições ao Brasil de ser um país melhor.

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Que lição a Operação Mãos Limpas pode dar à Lava-Jato, e de que forma isso pode interferir na história do Brasil daqui para a frente?

A lição da Mãos Limpas em respeito à Lava-Jato, no Brasil, é que depois da Operação Mãos Limpas nós tivemos Berlusconi (Silvio Berlisconi, empresário e político que foi primeiro-ministro italiano quatro vezes). Eu não sei o que ocorrerá com o Brasil após a Lava-Jato. Na Itália e na Europa causou muita surpresa a prisão do ex-presidente Lula, porque na Europa Lula é muito bem-visto e muito amado.

A prisão reforça ou acaba com o mito do Lula?

Na Europa temos a sensação de que Lula foi preso para evitar que se tornasse novamente presidente. Estou na Itália, não sei o que está ocorrendo no Brasil, mas certamente é uma situação perigosa porque todas as pesquisas eleitorais tinham declarado que Lula venceria as eleições se fosse candidato. Então se tem a impressão, aqui no exterior, de que tudo isso tenha acontecido para impedir sua terceira presidência.

Por que estamos vendo uma guinada à direita no mundo, inclusive no Brasil?

Eu vejo que (no Brasil) é uma reação à situação política que se criou, sobretudo uma situação midiática. Foram os meios de comunicação que, por quatro anos consecutivos, fizeram uma grande guerra – primeiro à Dilma, e depois contra Lula. Portanto creio que esta curva à direita seja uma guinada programada pelas classes ricas do país.

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Por que isso o senhor diz que isso seria perigoso para o Brasil?

Claro que é perigoso, é perigosíssimo porque pode levar a uma guerra civil.

Vivemos hoje sob as ameaças de Trump e a retomada de uma postura política mais conservadora na Europa. A que isso nos levará?

Neste momento há nos Estados Unidos uma política conservadora, em muitos países europeus há uma política conservadora, mas também em muitos países europeus há ainda uma política muito democrática. É democrática na Alemanha, por exemplo, e ainda é democrática na Itália, embora na Itália não estejamos ainda com um governo definitivo. É muito democrática na Espanha. Portanto há ainda países notadamente democráticos na Europa. E na América Latina temos um retorno da direita muito forte, também em simetria com a situação dos Estados Unidos, que estão nas mãos de Trump.

As posturas de Trump colocam o mundo em risco de uma nova grande guerra?

Claro, é um risco terrível. Enquanto Trump permanecer sempre haverá esse risco porque Trump é, de qualquer forma, o presidente mais despreparado da república americana.

As redes sociais fizeram com que as pessoas perdessem o “filtro”, e isso resultou numa corrente de ódio virtual. Qual o futuro disso?

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A presença das redes sociais é uma garantia de democracia, enquanto a televisão não é uma garantia de democracia. A televisão pode ser um instrumento de autoritarismo. Portanto, se existe uma boa rede de rede social existe uma maior probabilidade de haver democracia.

Mesmo que as pessoas se utilizem delas para esses sentimentos mais vis?

As redes sociais podem também transmitir sentimentos de ódio, mas de qualquer forma são uma possibilidade de voz, de presença sociopolítica da parte de cada cidadão. Enquanto que as grandes organizações televisivas, geralmente, são monopólios da elite.

No Brasil há uma resistência à redução da carga de trabalho. Trabalhar menos tempo garante que as pessoas sejam mais felizes?

A única possibilidade de haver uma forte empregabilidade é a redução do horário de trabalho. A Alemanha tem um horário de trabalho muito menor do que na Itália. Na Alemanha se trabalham 1,4 mil horas ao ano. Na Itália se trabalham 400 horas a mais. O índice de desemprego (na Itália) é de 12%, enquanto que na Alemanha o desemprego é de 4%. O único modo de vencer o desemprego é com a redução de horas trabalhadas.

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Isso faz o ser humano mais feliz?

É importante reduzir o horário de trabalho por duas razões. O primeiro objetivo é aumentar a empregabilidade e o segundo é ter mais tempo livre. O tempo livre é importante para a felicidade humana.

O homem está preparado para ter mais tempo livre? O que vamos fazer com ele?

Com tempo livre se fazem duas coisas, criar e procriar (risos).

Estamos prontos para isso?

O Brasil está mais preparado que os Estados Unidos (risos). E é preparado como a Itália. Especialmente na minha cidade, que é Nápoles. Sou de uma cidade perto de Nápoles, mas me considero napolitano. Nós, napolitanos, somos o povo mais parecido com o povo brasileiro.

Mas o brasileiro se espelha no norte-americano. Isso também ocorre na Itália?

O povo americano é aterrorizado demais, muito impulsionado ao consumismo, muito baseado na visão de trabalho como uma penitência. Portanto a cultura norte-americana é fortemente centrada no trabalho, e não na família, na cultura do tempo livre. A cultura brasileira e a cultura italiana são concentradas na família, no tempo livre, na cultura. A sociedade italiana é muito diferente no Norte e no Sul. O Sul da Itália é como o Nordeste do Brasil. O Norte da Itália é como São Paulo, muito mais americanizado, e o problema é a cultura americana. O Brasil também é muito americanizado, mas não totalmente. Ainda há uma parte do Brasil que é muito saudável, autêntica.

Falta valorizar essa autenticidade no Brasil?

Sim! A autenticidade é a grande força do Brasil. Os valores que eu citei antes, da solidariedade, da alegria, da sensualidade, da convivência, são valores preciosos na sociedade. Outros países estão perdendo esse grande patrimônio, o Brasil deve proteger. É como a Amazônia, (deveria) ocorrer uma ecologia de valores como existe uma ecologia de território.

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O senhor costuma dizer que o trabalho intelectual será a ocupação do ser humano nas próximas décadas. Mas no Brasil nós temos problemas na educação, e um déficit cognitivo muito forte. Qual será o futuro das pessoas que não se adaptam à produção intelectual?

Este é um problema muito sério para o Brasil e também para a Itália. À medida que a tecnologia progride, ela consegue realizar muitos trabalhos que antes eram feitos pelo ser humano. A tecnologia eliminou inicialmente o trabalho dos operários nas fábricas, depois o trabalho dos funcionários administrativos, e agora começa a eliminar o trabalho dos criativos, que requer sobretudo uma atividade de grande preparação intelectual. A preparação intelectual é fundamental para manter um país pós-moderno.

Há um projeto de lei no Brasil que retira das universidades públicas os cursos de formação em ciências humanas, como sociologia e filosofia. O que pensa a respeito?

É uma loucura, querem eliminar a filosofia e a sociologia justamente quando elas se tornam mais importantes e necessárias. É um erro contra o pensamento humano.

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Isso deixará o Brasil mais pobre de cultura?

O Brasil não é pobre de cultura. São tantos intelectuais, tantas universidades, tem tantos jovens que estudam. Há jornais muito importantes, televisão, uma rede social muito extensa. Não me parece um país pouco culto, mas de alto nível cultural. Se o Brasil quer eliminar a cultura humanística, focando somente na cultura tecnológica, comete um grande erro. Porque tecnologia é uma ferramenta, não é o fim. É o vaso, não o conteúdo.

Há 18 anos o senhor já disse que o teletrabalho é um modelo mais produtivo do que o trabalho comum. Há um movimento, ainda que lento, nesse sentido. Qual a tendência para os próximos anos?

É preciso distinguir o nível formal e o nível informal. No plano informal todos usam o teletrabalho, mas no plano contratual as empresas não utilizam, ou seja, se usa informalmente, mas não se usa contratualmente. Se usa no plano informal, mas não se usa no plano contratual.

Isso deve mudar?

Eu espero que sim. Espero que o teletrabalho se torne reconhecido contratualmente da mesma forma que ocorre com o trabalho (formal).

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O conceito de “estar de folga” ainda é o mesmo nos dias de hoje?

O tempo livre é uma arte, é uma profissão. Assim como nos preparamos para o trabalho também devemos nos preparar para o tempo livre. O tempo livre requer cultura para ser vivido de modo equilibrado.

Hoje as pessoas utilizam muito esse tempo na internet. Ela é a melhor amiga ou a pior inimiga do ócio?

Não, não é a pior inimiga do ócio. É uma ferramenta que pode servir para aumentar a minha cultura, para aumentar o meu número de amigos, para aumentar as informações das quais preciso. Depende do modo como é usada. Por isso eu digo que é preciso se preparar para o tempo livre da mesma forma que se prepara para o trabalho.

Perdemos muito tempo com a tecnologia, mídias sociais e internet?

Na Itália, por exemplo, agora nós trabalhamos menos horas do que 10 anos atrás. E mesmo assim produzimos hoje 10 vezes mais. Ou seja, os seres humanos estão aprendendo a produzir mais bens e serviços, com menos trabalho humano.

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Qual o papel que o trabalho terá na felicidade do ser humano daqui para a frente?

Depende do trabalho. O trabalho criativo pode ser um instrumento de felicidade, enquanto o trabalho mecânico é sempre um instrumento para ganhar o salário. Mas onde está o trabalho criativo é o que é se pode encontrar felicidade.

Vemos cada vez mais as pessoas mudando de vida, de trabalho, dizendo que dinheiro não traz felicidade. Essa tendência vai perdurar? Qual o papel do dinheiro nesse mundo em transformação?

O dinheiro, nos países capitalistas, continua sendo uma ferramenta fundamental porque tudo se compra com o dinheiro. Mas eu acredito cada vez mais que nós passaremos de uma economia da concorrência para uma economia da solidariedade. A uma economia da doação e que tem um valor mais moral.

As pessoas vão procurar cada vez mais o prazer do que o dinheiro?

Eu acho que cada vez mais se trabalha não só pelo dinheiro, não só por motivos instrumentais, mas também como forma de expressão. Também para realizar a própria personalidade, a própria vocação. Isso já é um motivo válido. Naturalmente, a própria vocação poderá ser realizada somente se o trabalho for criativo.

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Há espaço para o amor neste mundo dominado pela tecnologia?

Há mais espaço para o amor porque a tecnologia nos faz poupar tempo. Com a tecnologia podemos trabalhar mais em menos tempo, e ter mais espaço para o amor.

Há pesquisas que indicam que em países onde as tecnologias são mais avançadas, como no Japão, estão substituindo o sexo pelas relações tecnológicas. É uma tendência?

Eu espero que não. Eu penso que no Brasil o sexo nunca será como no Japão. Para a sorte o Brasil.

Falamos da situação do Brasil, da política mundial, das relações de ódio florescendo, mas ao mesmo tempo vemos que as pessoas estão mais preocupadas com sustentabilidade, com responsabilidade social. Essas ideias serão capazes de mudar o mundo?

Eu penso que no decorrer da história havia preocupações ainda maiores. Hoje, por exemplo, temos maior longevidade, vivemos mais tempo, as nossas doenças são mais curáveis, podemos entrar em contato com as pessoas amadas com maior velocidade, temos mais tempo livre. Eu não creio que esse seja o melhor dos mundos possíveis, mas certamente é o melhor dos mundos que existiram até hoje.

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Por quê?

Mais longevidade, mais tecnologia, maior globalização, mais comunicação, informação, um menor analfabetismo, e alguns países tem menos miséria.

Apesar disso, o ser humano parece ainda ser muito egoísta. É esse o nosso principal problema?

Há mais egoísmo hoje no Brasil ou na época da escravidão? Na época da escravidão o egoísmo era muito mais forte, quando se podia comprar e vender escravos. Creio que agora, tudo somado, é menos ruim do que antes.

Para onde nós vamos?

Eu creio que vamos em direção a uma a sociedade que inclui uma média de vida mais longa do que hoje, na qual poderemos ter relações humanas mais equilibradas, na qual existirá maior difusão de cultura. Portanto, teremos um mundo melhor.