A simpatia em pessoa – Olsen Jr. – escreveu este conto só para a Revista de Verão. Mas quando rascunhava, lembrou de alguém e pediu para incluirmos a dedicatória: “Para Green Eyes, que sabe por que”. Além de escritor, é jornalista, formado em Direito e atual inquilino da cadeira 11 da Academia Catarinense de Letras. É o autor de Desterro, SC, livro finalista do Prêmio Jabuti de 2000, classificado pela Câmara Brasileira do Livro como um dos melhores livros de contos daquele ano. Vive atualmente em Rio Negrinho, que fica no Norte do Estado.
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A mulher do vizinho
O caso aconteceu assim…
Logo que me instalei na nova casa, “longe da multidão estulta”, diria Thomas Hardy, fui retomando velhos hábitos. Um deles era, nos finais de tarde, sentar num canto da varanda e cevar um mate solitário, como faz o índio mais empedernido. Num desses dias, faz algum tempo, foi que percebi uma silhueta feminina na casa em frente. Até aí nada demais, não fosse a distância de 300 metros entre nós e morarmos quase em frente um do outro, como se fosse um espelho e a mulher aparecer sempre nua, os cabelos soltos caídos nos ombros e um corpo de mexer com o instinto de qualquer caboclo menos civilizado.
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A mulher ficava imóvel. À vezes, tinha a sensação de um leve balançar da cabeça, o que se denotava pelas flutuaçõs dos cabelos, em pé o corpo todo delineado em suas formas generosas e provocantes, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Percebi, porém, que ela aparecia todos os dias exatamente naquele horário em que o dia vai perdendo espaço para a noite. Depois sumia sem deixar vestígios. Várias vezes permaneci ali tentando captar os seus movimentos na hora de se ausentar daquele palco que me tinha como espectador aparvalhado e mudo e tentado a ir ao seu encontro. Durante muito tempo aquela imagem era um conforto para um homem solitário e meus finais de tarde eram bem recompensadores.
Um dia, movido por um desejo milenar, sem qualquer planejamento, chamo o meu cachorro Thor e decido na mesma hora que iria até lá, na casa próxima, conhecer aquela vizinha sensual e que já estava me tirando o sono e a paz, deixando em seus lugares apenas um desassossego infernal que me não permitia viver. Thor era um cusco obediente e me entendia ao menor sinal. Naquela tarde seguimos em silêncio dando uma imensa volta por dentro do mato, evitando as trilhas mais batidas e nos aproximando do nosso alvo. Cerca de 20 metros da casa, obedecendo a um mesmo ângulo de visão que dispunha quando estava em minha varanda, achei que era o lugar ideal e me agachei dentro de um capão bem camuflado onde dificilmente seria visto. Thor ficou ao meu lado, em posição de ataque, bastando um leve movimento das mãos para partir em cima do que quer que fosse.
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A espera não me incomodava, tinha aprendido com meu pai (que aprendeu com meu avô) aquela técnica do caçador que sabe que o esforço terá sua recompensa. Final de tarde, aguardamos até chegar a hora… Mas o que é aquilo? Não acredito… A imagem vai se formando na varanda… Tenho vontade de gritar, um misto de histeria e desespero… Não pode ser, me recuso em crer no que os meus olhos vendo… Ela está lá, inteira, nua, cabelos vaporosos e flutuantes em seus ombros… Deus meu! Exclamo… Isto não está acontecendo… Vamos embora, Thor, grito, saindo do meu lugar e pegando a trilha… Para casa! – instigo o cachorro – e ele me ultrapassa e sou eu correndo atrás dele procurando sair logo dali.
Corremos pela trilha aberta já conhecida e só paramos quando estávamos próximos de casa… Pouco depois de jogar o meu corpo em cima de um pelego no banco da varanda e abraçar o pescoço do Thor é que comecei a rir e falar sozinho, ninguém vai acreditar… Boa essa… Durante alguns dias da minha vida estive apaixonado, como todo o poeta, por uma mulher que só existia em minha imaginação… A figura ia tomando forma na varanda do vizinho a partir da projeção da sombra de uma árvore com pequena galhada que mexia insuflada por qualquer brisa daquele verão… O tronco era curvilíneo, o sonho irrealizável e o desejo insatisfeito… Acendo a luz da sala e me detenho na fotografia que mandei emoldurar onde aparece o escritor William Faulkner em cima de um trator em uma terra que está sendo arada e me contento com a ideia de que não sou mais pioneiro e nesta fazenda onde me instalei ainda existe muita coisa para ser feita.
Vocábulos de uso gaúcho
Índio – homem do campo
Caboclo – indivíduo nativo
Cusco – cachorro sem uma raça definida
Capão – Área de mato no meio de um descampado
Pelego – Couro de carneiro ou de ovelha que serve para amaciar o acento