*Carla Pires Vieira da Rocha é jornalista, doutora em Ciências Humanas e pesquisadora nas áreas da Alimentação e Vitivinicultura na Universidade Federal de Santa Catarina.
Continua depois da publicidade
Nesta última semana, a principal região produtora de vinhos do Brasil ganhou centralidade nos noticiários ao redor do país em razão da operação realizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revelando que mais de 200 trabalhadores eram mantidos em regime análogo à escravidão. De acordo com os responsáveis pela operação, ocorrida na cidade de Bento Gonçalves, Serra do Rio Grande do Sul, os trabalhadores eram contratados por uma empresa terceirizada (Oliveira & Santana) para atividades envolvendo a colheita, carga e descarga da uva, visando atender três vinícolas renomadas da região (Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi) e mais 23 proprietários rurais.
Receba notícias do DC via Telegram
A operação ocorreu após a denúncia de três trabalhadores que conseguiram fugir do local em que eram mantidos contra a sua vontade e em situação descrita como degradante. Detalhes da operação indicam alojamento insalubre, salários atrasados, jornadas exaustivas, alimentação imprópria, cárcere privado e até mesmo violência física, com a utilização constante de choques elétricos e spray de pimenta.
As imagens divulgadas nos noticiários mostrando os alojamentos em condições inabitáveis em que eram mantidos esses trabalhadores contrastam com as imagens de grande parte do universo vinícola em expansão no Brasil. Paisagens bucólicas ostentando longas filas de videiras, edificações sofisticadas, taças reluzentes de vinhos para degustação de entusiastas emergentes, cenários projetados para promover a vitivinicultura local e também para conquistar enoturistas ávidos por novas experiências enológicas.
Continua depois da publicidade
Divergindo da glamourização crescente em torno do vinho no país, a operação revela um lado sombrio. Neste setor, que há anos vem tentando se afirmar tanto em âmbito nacional quanto internacional, a busca de qualidade e excelência na produção de vinhos envolve a exaltação do trabalho de produtores, enólogos e de uma série de tecnologias progressivamente aprimoradas. Entretanto, a operação mostrou que parte da mão de obra envolvida na produção de vinhos não apenas é invisibilizada, mas está sujeita a ser gerida por meio da exploração e de anomalias no campo trabalhista.
Embora a operação realizada envolva empreendimentos vinícolas específicos, não permitindo uma crítica generalizada, coloca em relevo a herança de um passado de violação de direitos e condições de trabalho degradantes relativos à escravidão que ainda vigora em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.
Segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, no ano de 2022, 2.575 trabalhadores foram resgatados de condições de trabalho análogas à escravidão. O maior resgate foi na atividade de corte de cana-de-açúcar. Demais atividades incluem apoio à agricultura e cultivos de arroz, coco-da-baía, alho, café, maçã, entre outras.
Além de ampliar o foco sobre uma realidade que há muito já deveria ter sido sepultada, os dados também apontam para uma problemática crescente da alimentação no mundo atual. A industrialização alimentar, que inclui o campo vitivinícola, tem sido caracterizada por um abismo cada vez mais profundo entre a produção e o consumo, ou seja, não temos a mínima ideia de como foi produzida a maior parte dos alimentos que ingerimos, quem exatamente os produziu, em que condições foram produzidos e quais impactos negativos foram gerados. Além do valor nutritivo, a qualidade de um alimento deveria ser determinada pela ética, transparência e pela responsabilidade social, ambiental e econômica envolvidas na sua produção. No caso do vinho, qualidade deveria significar bem mais do que agradar as papilas gustativas.
Continua depois da publicidade
Leia mais
O que se sabe sobre o resgate de 200 pessoas em situação análoga à escravidão no RS
Homens em situação de trabalho escravo são resgatados em plantação de SC