À frente da embaixada do Brasil na Rússia há cerca de três meses, o paulista Fernando Mello Barreto tem um um longo currículo diplomático, e não é a primeira vez que lida com situações delicadas envolvendo brasileiros. Uma das mais rumorosas e desafiadoras até então havia sido em Londres, onde foi cônsul de 2003 a 2006 – e lidou com a morte de Jean Charles de Menezes pela polícia londrina. Agora, diz enfrentar uma situação inédita com a prisão da ativista Ana Paula Maciel pelo protesto do Greenpeace no Ártico. Na assistência à bióloga gaúcha presa em Murmansk com outros 29 tripulantes do barco Arctic Sunrise, Barreto comemora conquistas que podem até parecer pequenas, mas que exigem horas de dedicação e habilidade da diplomacia diante da rigidez das autoridades russas.
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Barreto conversou nesta sexta-feira por telefone com Zero Hora. Leia trechos da entrevista:
Zero Hora – Quando a situação de Ana Paula começou a preocupar, de fato, o governo brasileiro?
Fernando Mello Barreto _ Acho que, por ter essa experiência, assim que eu soube, pela primeira notícia que saiu, já saí atrás disso. Me preocupei desde o primeiro momento. No dia 19, assim que foi noticiado, já entrei em contato com o Ministério das Relações Exteriores para confirmar que havia uma brasileira entre os detidos e fui informado que sim, e eles disseram que deveríamos contatar diretamente as autoridades locais, e que não iríamos resolver em Moscou. Imediatamente, passamos a ter contato com as autoridades locais para ver como teríamos acesso a ela porque ela ainda estava no barco Arctic Sunrise que estava sendo apreendido. No dia 20, recebemos a notícia de que o barco seria rebocado até a bahia de Murmansk e que isso levaria uns três ou quatro dias. Mandamos imediatamente a chefe do setor consular para lá. Murmansk fica a três horas de voo daqui, é longe, e já fizemos umas três viagens de diplomatas até lá. A primeira viagem foi quando ela iria chegar, em 23 de setembro. O barco só chegou no dia 24. Nossa diplomata foi até o barco e fez o primeiro contato (com Ana Paula) ainda no barco. Foi na noite de 24 de setembro que a justiça russa transportou os ativistas para o que eles chamam de sede do Comitê Investigativo de Murmansk. O Brasil, a Argentina e os Estados Unidos foram os primeiros a ver que eles estavam sendo levados para um centro de detenção e foram os nossos diplomatas com esses outros países que solicitaram que os advogados que tinham sido contratados pela organização pudessem ter acesso aos presos porque eles iriam ser interrogados, como de fato foram, na madrugada de 24 de setembro. Só que, desde esse primeiro momento, se colocou o problema do intérprete para o português. E desde o primeiro momento, se complicou essa situação para achar alguém lá em Murmansk que falasse português. Então, com razão, ela (Ana Paula) se negou a assinar os primeiros documentos porque não estava entendendo o que estava acontecendo. Nós não podemos atuar como intérpretes pela legislação deles. Só podemos fazer visitas consulares, de acordo com a Convenção de Viena. Nossa preocupação era que ela estivesse sendo assistida, bem tratada, tivesse advogado, intérprete, essas coisas. O segundo contato com ela foi durante o interrogatório, de madrugada. A nossa diplomata estava lá presente. Aí, ela ficou aguardando a primeira audiência com o juiz, o que ocorreu só no dia 29.Um segundo diplomata viajou e assistiu à audiência. Foi nesse momento que tivemos contatos diversos com advogados e estivemos o tempo todo obtendo dados para intermediar o contato dela com a família. Aqui, em Moscou, nos reunimos com outros países. Propus e fui autorizado a assinar em 3 de outubro uma carta de garantia que assegurava às autoridades russas que a Ana Paula se manteria aqui para aguardar as decisões em liberdade. A segunda audiência que deveria examinar essa carta de garantia foi em 17 de outubro e novamente se colocou mais uma vez o problema de intérprete. Tinha um intérprete lá, mas estava muito ruim. A juíza mesmo chegou à conclusão de que ela não poderia continuar, que Ana Paula não estava entendendo. A audiência foi suspensa e dito que terá de ser encontrado um novo intérprete, alguém que realmente saiba. Com isso, não foi examinado o pedido embasado na minha carta. Tudo está sendo feito juntamente com o advogado que entende que isso é o correto. Outros casos semelhantes já foram julgados e nenhum deles foi autorizado aguardar em liberdade. O governo argentino, com quem tenho contato diário, está na mesma situação, só que eles têm dois presos. É a mesma situação em termos de intérprete e de cartas de garantia. O pedido de um deles já foi rejeitado.
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ZH – Isso leva a crer que dificilmente irão aceitar o pedido de Ana Paula?
Barreto – Não posso julgar o que vai acontecer porque eles estão tentando julgar cada caso separadamente. O que tem servido para eles rejeitarem os pedidos é o fato de que as pessoas que vão ser julgadas não tenham domicílio fixo em Murmansk. É claro que nenhum deles tem. Esse é um dos requisitos da lei que tem sido usado para rejeitar os pedidos para que aguardem em liberdade o fim das investigações.
ZH – Se for rejeitada a carta, que outra alternativa teria?
Barreto – Agora o que vai ser pela frente é uma questão dos advogados, que têm seus recursos. Agora, o processo de investigação tem um prazo até 24 de novembro para terminar, se não for prorrogado. Até lá, temos tido esses problemas processuais. Um é tentar que ela aguarde em liberdade. O outro é ela não ter podido entender o que está acontecendo.
ZH _ Mas do ponto de vista do governo brasileiro, o que mais pode ser feito?
Barreto _ Posso responder sobre o que estamos fazendo que é a assistência que podemos dar. A questão de contatos políticos, que nós temos excelentes relações com a Rússia, esses contatos estão sendo mantidos em diversos níveis, mas no momento o que a embaixada está fazendo é a questão de acompanhamento. O governo aqui tem dito que, segundo a legislação local, quem tem competência são as autoridades locais. Eu, logo no começo, mantive contato com as autoridades de Moscou, mas eles disseram “não, o processo está lá, são as autoridades lá que têm a jurisdição”. O que pode ser feito pela embaixada está sendo feito.
ZH – Como está Ana Paula? O que ela tem dito?
Barreto – Nas três viagens (feitas pela diplomacia brasileira a Murmansk) e cinco contatos que tivemos com ela, ela tem felizmente se mostrado bem de saúde, está bem psicologicamente. A gente pergunta sempre se está se alimentando bem. Nós levamos livros e revistas para ela se distrair um pouco. Ela tem quarto individual, calefação, televisor, água potável. Tem saídas para caminhadas, encontra outras pessoas detidas. Enfim, dentro das circunstâncias, ela está bem. Temos intermediado o contato com a família. As regras são muito estritas com relação a isso. Primeiramente, eles queriam intérprete para acompanhar a conversa com a família. Conseguimos que essa exigência não fosse feita e ela fez aquele telefonema (para a mãe, Rosangela, em Porto Alegre). Mas aqui é tudo muito regulado, até o número de coisas que se pode entregar. Há um limite de 30 quilos por mês. Como ela recebeu do Greenpeace objetos e outras coisas que ela pediu, nós conseguimos que os livros não sejam computados nesses 30 quilos. É uma legislação muito estrita, e temos conseguido, dentro do que permite a legislação, algumas facilidades. Telefonema, por exemplo, nem todos conseguiram. Nós conseguimos com muita assistência e habilidade diplomática. As visitas também são restritas. Só permitem duas visitas por mês. Duas já foram feitas este mês de outubro, então estamos vendo para que ela tenha visita em novembro.
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ZH – Ela já esgotou a cota de visitas para todo o mês?
Barreto – Isso é o que nos foi dito ontem. Vamos ver agora se conseguimos que o juiz separe o que é visita consular e família. Não sabemos ainda se será possível. São coisas que no dia a dia estamos tentando decifrar. Embora eles tenham regra, em russo, é preciso traduzir, entender, ver com o advogado o que a gente consegue achar, estamos no dia a dia na luta para poder dar assistência. Ela teve duas visitas consulares na cela onde ela está. A primeira foi logo na ocasião da primeira audiência e a segunda por ocasião da segunda audiência. Estivemos com ela na cela, ver como ela estava e entregar coisas para ela. Foram duas visitas.
ZH – A Holanda já acionou a Rússia na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Que outros movimentos diplomáticos podem ser feitos?
Barreto – Deixa explicar esse primeiro item porque inclusive ela (Ana Paula) própria nos perguntou. A Holanda tem um elemento diferente que é o país que porta a bandeira do navio em questão, mas essa questão não afeta diretamente em nada o caso de cada um dos que estão lá. Na parte política diplomática, eu não vou entrar porque a embaixada aqui está se atendo à assistência consular. Claro que há contatos de outros níveis, a presidente determinou ao meu ministro, o ministro falou com o ministro deles, enfim, mas o que eu posso informar do ponto de vista da embaixada é a assistência que estamos dando.
ZH – Com relação à acusação de pirataria, qual a avaliação que o senhor faz dessa acusação que a Rússia está fazendo?
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Barreto – Não sou autoridade em lei russa, mas a definição de pirataria pela tradução do russo, seja para o inglês ou para o português, dá margem para interpretações. Vamos ver o que o tribunal entende. Pirataria é definida aqui como apossar-se de bens e propriedades, acho que aí vai estar o cerne da questão judiciária.
ZH _ A Rússia recentemente aprovou lei mais dura em relação a protestos, há casos de prisão como o das integrantes da banda Pussy Riot, que foram presas por protestarem contra o governo em uma igreja. As questões políticas influenciam no judiciário?
Barreto _ Não me caberia do ponto de vista diplomático dar opinião em relação a assuntos internos, não seria correto. Estamos vendo esse como um caso específico.
ZH _ O senhor está otimista?
Barreto _ Estou realista. É um caso que tem suas dificuldades e esperamos que possam ser transpostas.
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