Quando se fala em mal, somos, frequentemente, movidos por sentimentos maniqueístas: o mal pode ser separado do bem; há pessoas boas e más. Tal simplismo cai por terra no resultado da pesquisa que Philip Zimbardo realizou na década de 1970, na Universidade Stanford (USA), sobre a natureza e as circunstâncias da maldade. Para tanto, dividiu um grupo de jovens brilhantes entre guardas e prisioneiros num ambiente que simulava uma prisão. Constatou, então, que os maus tratos de uns – e a submissão de outros – extrapolaram todos os limites previstos. Em menos da metade do tempo programado, a experiência teve de ser encerrada – e o próprio Zimbardo já se manifestou em entrevistas lamentando o sofrimento provocado.

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As conclusões do estudo – mais tarde sistematizadas no livro O Efeito Lúcifer (Record, 2012) – são deslumbrantes e aterradoras: ” qualquer um pode ser treinado para torturar”; “o mal está no caráter, na personalidade da pessoa”; “todos fariam o bem, claro, até que uma nova ordem se estabeleça”; “diante de condições favoráveis, pouquíssimos são capazes de resistir ao mal”.

Os fatos tratados pelo psicólogo norte-americano iluminam um caso extremamente atual: o da gaúcha Ana Paula Maciel, cuja chegada a Porto Alegre está prevista para hoje, depois de meses enjaulada na Rússia, sempre dando mostras de altivez em lutar pela causa em que acredita. No entanto, não só para a visão dos representantes do braço mais nocivo da polícia secreta russa, mas também para os menos avisados, ela foi, inicialmente, considerada criminosa. Tudo porque adotou uma postura que, segundo Zimbardo, seria a única possível diante do mal: não permitir sua banalização, conforme a sempre atual Hannah Arendt. Talvez seja esse o motivo pelo qual o mal prospera: considerarmos normal e desimportante algo que deveria ser enfrentado desde sua raiz.

Zimbardo acrescenta que, para que possamos resistir ao poder das circunstâncias, devemos aprender a identificar as incoerências entre o que se diz e o que se faz, parar de justificar decisões equivocadas e, sobretudo, aprender a questionar a autoridade quando ela for injusta, amoral e antiética. Pois é isso o que o Greenpeace faz há décadas. É com essa causa que nossa gaúcha está implicada.

Quando os ativistas foram abordados, encontravam-se em águas internacionais – em um espaço onde não existe jurisdição de qualquer país. As únicas armas que carregavam eram uma faixa com uma mensagem pelo Ártico e o desejo de defender o meio ambiente.

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Caberia, então, a pergunta: não teriam sido as autoridades russas os verdadeiros piratas, já que capturaram os ativistas em águas internacionais? Esse ato ofereceu substrato legal para que a Rússia fosse levada às cortes internacionais, sobretudo ao Tribunal Internacional do Mar, o que, felizmente, não tardou a acontecer.

Afora isso, houve, por parte das autoridades russas, violação de direitos fundamentais dos ativistas. É bom lembrar que tais direitos – dentre eles, e talvez o mais importante, o da dignidade humana – são assegurados por um extenso rol de Tratados e Convenções Internacionais, dos quais a Rússia certamente também é signatária, como as Convenções de Genebra (1926 e 1929), a Carta das Nações Unidas (1945), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950), a Convenção sobre os Direitos do Mar (1982) e a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992 .

Possivelmente uma das mais importantes dimensões da internacionalização do direito na atualidade diz respeito à possibilidade de dar existência jurídica ao universal, condição para estabelecer- se uma nova linguagem que é a da existência de um patrimônio comum da humanidade. Essa concepção alargada do fenômeno jurídico implica, necessariamente, reconhecer – no campo dos direitos humanos e ambientais – o status de primazia destes direitos em uma intervenção de escala dimensional já não somente nacional, mas regional, supranacional, internacional e mesmo global.

E esta construção permanente de um ambiente de diálogo judiciário de clara projeção global implica reconhecer, obrigatoriamente, o protagonismo dos Tratados, das Convenções Internacionais e das decisões das Cortes Internacionais de Justiça.

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O acatamento – por vinculação – das disposições desses Tratados e das decisões dessas Cortes por parte dos Estados nacionais mostra-se, imperativamente, como medida de abertura hermenêutica para consolidação, resguardo e concretização do conceito de essência universal da dignidade humana.

A submissão dos ativistas a provações como mútua incomunicabilidade e restrições no fornecimento de água foi uma afronta aos direitos fundamentais de toda a família humana.

Zimbardo, indagado se algumas pessoas resistem mais à maldade do que outras, refere em entrevista à Veja concedida em agosto passado que sim, e que todas têm muito em comum. São pessoas que repetem um padrão de comportamento: não se submetem a um sistema que consideram injusto e se rebelam contra autoridades tiranas às quais quase todo mundo parece simpático.

Nos dias que se seguiram à prisão dos ativistas, um programa em um veículo de comunicação gaúcho realizou um debate ao vivo, com participação de especialistas. Em uma suposta pesquisa interativa realizada na programação, surpreendentemente (ou nem tanto, para os mais atentos), os ouvintes que participaram apoiaram, em maioria esmagadora, a conduta das autoridades russas no tratamento dos ativistas.

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O exercício da liberdade de expressão deve, por todos, ser respeitado e resguardado. Entretanto, o que é preocupante é essa ignorância (de quem ignora) que, amparada em argumentos de toda a espécie, todos com o mesmo fundo conceitual, necessitaram criminalizar o comportamento dos ativistas e enfatizar a autoridade e a independência da Rússia como elementos legitimadores de sua ação.

E aqui entra, mais uma vez, a valiosa contribuição do psicólogo norte-americano e sobre a qual vale a pena refletirmos: não seriam pessoas como Ana Paula e seus parceiros de causa aquelas sobre as quais o pesquisador está a nos falar? Aquelas que não se submetem e se rebelam contra autoridades tiranas, ainda que quase todo mundo à sua volta seja simpático a essas?

E se assim for, não seriam também esses ativistas, dentre os quais Ana Paula, daquelas pessoas – quem sabe raras – que resistem mais à maldade do que outras? A razão que nos impulsiona a julgar e a condenar, sem sequer tentarmos perquirir o que pode estar além do visível, das manipulações de toda a espécie, deve ser objeto de apurada e crítica reflexão, como nos aponta Zimbardo.

No contexto atual de ecocomplexidade, as maiores e mais relevantes questões que envolvem a própria sobrevivência humana na Terra estão na ordem do dia. É necessário, portanto, que reflitamos de forma crítica, desapegada, solidária e imparcial, tendo como móvel o bem maior da humanidade.

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Como afirma Zimbardo: ninguém está imune ao mal. Todos somos vulneráveis. No entanto, pessoas como Ana Paula e seus amigos ativistas têm uma chance, exatamente por se rebelarem.

E nós?