Há uma semana, o então técnico do Figueirense, Milton Cruz, dava uma coletiva após a derrota do time quando foi insultado por dois torcedores, na área restrita à imprensa e familiares. Em praticamente 50 anos envolvido com futebol, como jogador ou treinador, foram os xingamentos mais duros que já recebeu:
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– Me agrediram com palavras, a gente fica muito chateado. A diretoria não queria que eu fosse dar a coletiva, mas não matei ninguém, não roubei e queria dar satisfação para o torcedor, que não se resume a esses dois – diz o paulista de 61 anos, que foi demitido por decisão da diretoria, embasada também na pressão da torcida.
Esse não é o único caso de intolerância e ódio recente em Santa Catarina. Basta olhar as redes sociais que neste período eleitoral se transformam ainda mais em campo de batalha, com mensagens de ódio e, em alguns casos, até com ameaças a candidatos e opositores.
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Mas, afinal, por que mesmo com tantos avanços ainda há dificuldade em aceitar as opiniões ou posturas divergentes? Especialistas explicam que o debate de ideias pode, e deveria ser saudável, mas para isso é necessário recuperar algumas habilidades como escutar e respeitar o outro, ter empatia e reaprender a discordar.
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O professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos João Angelo Fantini, autor do livro Raízes da Intolerância, afirma que além de comportamentos explícitos, como racismo, xenofobia e homofobia, há formas sutis de intolerância, que “estão arraigadas de maneira profunda no psiquismo humano e que por isso são de certa forma partilhadas.
– Aposto muito em uma ética pessoal para reverter esse cenário de intolerância: somos estranhos até para nós mesmos (temos um lado inconsciente) e isso deveria servir de parâmetro para avaliar a estranheza do outro. Mas não acredito que deveríamos nos tornar mais “tolerantes”: esta posição implica que estamos em uma posição superior, que “tolera” o outro. Deveríamos antes aprender com as diferenças entre eu e o outro – explica.
Recuperar a coragem e retomar o diálogo
Para alcançar esse objetivo de aprender com as diferenças, o caminho passa pela comunicação não-violenta, defende Dominic Barter, referência internacional nesta ferramenta desenvolvida para lidar com conflitos. Ele diz que esse tipo de comunicação é fundamental neste momento “de intenso estresse psíquico, desencontro entre as pessoas e enfraquecimento dos pactos sociais e instituições”.
Barter reforça que é necessário recuperar a coragem perante as diferenças e retomar o diálogo. Apesar de não ter uma receita pronta para estabelecer o que chama de discordância saudável. Ele reforça que relembrar momentos de interação que foram tensos, escrever as falas em um papel e se questionar, por trás dos discursos e ações, quais foram as necessidades em comum que os envolvidos queriam ao agir assim.
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Mas conseguir debater com calma e ainda aprender com isso não é tarefa fácil. A advogada criminalista Eleonora Rangel Nacif ministra a aula “Como discordar”, na The School of Life, para ensinar as pessoas de como tirar proveito dos conflitos, que, acredita, podem ser benéficos:
– O conflito é interessante porque que nos faz lembrar que estamos em uma democracia, onde podemos discordar abertamente. Além de podermos questionar nossas próprias crenças e rever nossas opiniões – analisou.
Segundo ela, para que o antagonismo saudável não descambe para violência, é importante colocar as ideias com assertividade, mas sem raiva, sarcasmo ou agressividade.
Ódio online
A intolerância sempre existiu, a diferença é que hoje, com as redes sociais, ela tem o potencial de ser ainda mais disseminada, afirmam especialistas. Prova disso é a quantidade de comentários intolerantes que circulam pela web. O doutor em sociologia André Lemos, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço da Universidade Federal da Bahia, lembra que as redes sociais são reflexo da sociedade, mas os algoritmos acabam definindo onde e quem vê determinadas opiniões e, no digital, as pessoas não parecem interessadas no debate:
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– Se aparece alguém com opinião diferente, eu deleto, bloqueio, esse não é um fenômeno novo. A novidade é a lógica algorítmica e o uso de robôs para disseminar as mensagens de ódio.
O especialista defende que se, por um lado, o usuário tem a falsa sensação de proteção na internet ao “gritar” com o outro sem que ele esteja por perto, também há rastros passíveis de serem buscados.
– Internautas acabam colocando ideias xenófobas, homofóbicas, racistas e se blindam num pseudo-anonimato que não existe. Se alguém pratica um crime pela internet isso é possível de ser rastreado, então a pessoa poderá ser identificada e responsabilizada. A nossa legislação já prevê mecanismos para isso – confirma a advogada Eleonora.
Para evitar essa proliferação digital do ódio, a orientação é ter ciência que os algoritmos definem o que você está vendo e tentar se certificar sempre da veracidade das informações que são compartilhadas. O especialista em mediação de conflitos Dominic Barter e diz que as redes sociais, além de desafios, representam possibilidades para trabalhar a tolerância:
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– Quem já não escreveu uma mensagem, leu, pensou melhor e editou? Lá há sempre a possibilidade de tirar um tempinho, receber apoio, refletir sobre o que realmente quer e que não vai se arrepender de ter dito depois.
Mais empatia, por favor
Um meio para aceitar mais o próximo e as diferenças é a empatia. Essa habilidade consiste em se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, tentando compreender os sentimentos e perspectivas diferentes e usar essa compreensão para guiar as próprias ações. O cientista político e sociólogo Roman Krznaric, no livro O Poder da Empatia, diz que, apesar de os seres humanos serem naturalmente empáticos, vive-se atualmente um déficit dessa habilidade e isso pode estar relacionado ao fato de mais pessoas morarem sozinhas e se envolverem menos em atividades sociais e comunitárias. Uma das saídas é, além de reforçar o ensinamento em casa na prática, trabalhar a temática em escolas. Exercitar a empatia e o diálogo foi inclusive uma das aprendizagens essenciais definidas na Base Nacional Comum Curricular, aprovada no ano e que servirá como referência para a formulação dos currículos em todas as escolas públicas e privadas do país.
Para a mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Tatiane Cerqueira, além de educação são necessárias políticas públicas para lidar com a intolerância, além de ampliar o debate sobre racismo. Tatiane pesquisa, em sua dissertação, as migrações de baianos para a Grande Florianópolis. Ao colher depoimentos de seus conterrâneos, constatou que o racismo e a xenofobia fazem parte do dia a dia desses moradores, que muitas vezes ouvem discursos de ódio e insultos:
– Nós não somos aceitos aqui. Me incluo nisso, porque também sou negra e baiana. É se sentir estrangeiro em seu próprio país. Que civilização é essa que não consegue aceitar uma cultura diferente? Tem uma grande população negra aqui que não é respeitada, não é aceita.
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NÚMEROS DE DENÚNCIAS NO DISQUE 100 EM SC
- De origem – 1
- Por identidade de gênero – 3
- Por orientação sexual – 10
- Racial/étnica – 3
- Religiosa – 6
- Social – 2
* por tipo de discriminação em 2017
*Serviço do Ministério dos Direitos Humanos que atende denúncias de violações