Uma reportagem publicada no início do mês pela revista Veja São Paulo, intitulada Os Sultões dos Camarotes, causou furor nas redes sociais e lançou um dos mais recentes fenômenos na internet, o “rei do camarote”. Alexander de Almeida, personagem da matéria, que afirmou gastar R$ 50 mil em uma balada, já virou tumblr, perfil falso em redes sociais, destaque de sites de humor, bem como alvo de críticas inflamadas e deboche escancarado. Além da reportagem, protagonizou um vídeo intitulado Os 10 Mandamentos do Rei do Camarote, que na quarta-feira havia passado de 3,5 milhões de visualizações no YouTube. Como o salto da web para a TV é cada vez menor, está a um passo de tornar-se a celebridade que, segundo a reportagem, até então não era. Tarde demais: a voracidade do público já o lançou ao tipo de fama no qual o rei, queira ou não, faz as vezes de bobo da corte.

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Não posso escrever sobre Alexander: não o conheço, sequer sei se existe de fato ou se trata-se de uma “trollagem”, como alguns suspeitam. Isso pouco interessa, prefiro inclusive pensá-lo como personagem de ficção, como é qualquer história que se conta sobre uma pessoa. A questão que esse factoide coloca é: por que o personagem “rei do camarote” causou tamanha comoção entre a plebe? As reações à reportagem foram desde as mais violentas, condenando-o por seus excessos, às debochadas, não menos agressivas. Houve quem se compadecesse do “pobre novo rico” que não encontra outra forma que não ostentar para se inserir em um ambiente ao qual, não fossem as verdinhas, não teria acesso.

Foi esse o pecado do “rei do camarote” – e condenado pelos súditos em praça pública: a ostentação. Alexander exibiu ao Brasil (e ao mundo inteiro, via internet) carros, champanhas e contas astronômicas até então apenas vistos por aqueles que cruzavam seu caminho nas baladas. Estes certamente não se importavam de ser convidados para o camarote no qual abundam bebida importada, belas mulheres e rostos famosos. Mesmo que Alexander gerasse aversão, era melhor contê-la (talvez apenas vazá-la em pequenas doses tête-à-tête) – vai que ele convida para o camarote? Se de graça vai até injeção na testa, que dirá espumante francês.

Na internet, essa peculiar praça pública na qual se tem a ilusão do anonimato, a coisa não foi bem assim. Mandaram-se mensagens de escárnio aos seus perfis nas redes sociais, escreveram-se textos com 50 tons de ódio, criaram-se sites, imagens, vídeos, músicas, toda a parafernália de memes que surge quando uma figura pública dá uma bola fora. Alexander não era figura pública, foi promovido a tal pela reportagem e de cara teve que lidar com uma das mais cruéis facetas dessa condição: o linchamento moral. A guilhotina é acionada com alguns cliques, não é mais preciso invadir o palácios para degolar os monarcas condenados pela turba.

O argumento de muitos para justificar sua crítica – e seu ódio – é de que é moralmente condenável ostentar riqueza em um país como o nosso, no qual ainda há pessoas que morrem por miséria. É difícil enfrentar essa nobre posição, banhada de amor ao próximo e desejo de igualdade. O que as belas almas filantrópicas esquecem é que, ao crucificar Alexander, buscam expiar um pecado que provavelmente cometem diariamente: todos nós ostentamos. Seja passando de carro ao lado do ônibus lotado, saindo do supermercado cheios de sacolas (e não apenas da cesta básica, quem não gosta de um pequeno luxo?), puxando do bolso o iPhone para telefonar na fila do banco. Claro que não consideramos isso ostentação, gostamos de pensar que nossa condição é o normal: sempre há alguém acima de nós para ser aquele que tem demais, e alguém abaixo para invejar aquilo que nos é de direito. Dificilmente somos os privilegiados ou os invejosos. Mas não são só os bens materiais que se ostentam. Podem ser as qualidades – a beleza, a bondade, a superioridade moral. Sem se dar conta disso, muitos críticos de Alexander incorreram no mesmo pecado que condenaram.

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Aqueles nos quais Alexander despertou apaixonadas ou compadecidas reações ignoram que, em algum recôndito escondido, o invejam. Não porque gostariam de ser o “rei do camarote”, mas porque ele pode se dar ao luxo de não se preocupar com dinheiro, aparentemente pode ter o que quer. Se, enquanto sociedade, somos pautados por um ideal de fraternidade, Alexander é como o irmão mais velho da prole: sempre vamos encontrar uma razão para criticá-lo, porque nos mostra que podemos menos que ele, que mesmo irmãos não somos iguais. Travestimos de superioridade moral a inveja que subjaz à relação com os irmãos que, imaginamos, podem desfrutar de um gozo que nos é vetado (mas secretamente desejado): poder fazer o que bem se quer.

O preço que pagamos para viver em sociedade é uma renúncia a esse gozo: se fizéssemos só o que nos desse na telha, em breve esbarraríamos na telha do vizinho, e estaria armada a querela. Esse aprendizado não é sem sofrimento, vai se dando aos poucos, à medida que passamos da condição de bebês-reis para a de apenas mais um sujeito no mundo, que precisa de mais do que sangue azul para mostrar seu valor. Aprendemos a lidar com os irmãos e seus equivalentes – colegas, amigos -, com as frustrações e também as benesses que nos proporcionam (por exemplo, a de não sermos tão sós como se é na condição de soberano). Abrimos mão disso para obtermos aquilo, vamos negociando, no jogo e no amor, para encontrar compromissos que deixem razoavelmente satisfeitos a ambos os lados. Trabalhamos para ter o que queremos, quer sejam bens ou afetos.

O “rei” Alexander parece burlar isso que a tanto custo construímos. Despeja no chão garrafas do espumante que provamos uma vez em uma ocasião especial, atrai dezenas de belas mulheres sem ter maior atrativo físico, é rodeado por famosos que admiramos na TV. Pode ser ilusório – e tratamos de lembrá-lo disso ao criticá-lo -, mas é uma ilusão semelhante àquela que guardamos secretamente, dos tempos em que fomos (ou imaginamos que fomos) reis do camarote-casa e vivíamos rodeados de mamadeiras e afagos. Guardamos essa fantasia porque esperamos revivê-la algum dia, se a justiça divina prevalecer, seja na terra ou no céu. Assim como esse desejo de reinar nos é proibido, sentimo-nos no dever de interditá-lo aos irmãos que, com sua conduta, ousam nos lembrar que ele segue ali, vivinho da silva.

A superação do egoísmo absoluto dos (fantasiados) dias de rei é condição necessária para uma vida entre semelhantes. O desejo de que possamos viver em uma sociedade mais fraterna e igualitária é nobre, há muitos que trabalham arduamente para isso, não fosse assim as desigualdades sociais seriam ainda mais gritantes. No entanto, linchar em praça pública quem parece indiferente a essas questões em nada contribui para amenizá-las. Apenas apazigua a culpa que carregamos por, apesar das boas intenções, também ostentarmos privilégios – e desejar ainda mais, sejam eles materiais ou não. Condenar Alexander é condenar esse pequeno rei que segue nos habitando, e que não combina muito com a imagem de bom samaritano que preferimos trajar ao sair para a praça, real ou virtual, na qual sempre tentamos ostentar nossa melhor imagem.

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