O cenário de enchente no Vale do Itajaí fez os olhares se voltarem para José Boiteux. A cidade abriga a maior barragem de contenção de cheias de Santa Catarina e tem impacto direto no nível do Rio Itajaí-Açu na região de Blumenau. Estima-se dois metros a menos de água se o fechamento das comportas ocorrer. Apesar da relevância, a estrutura é alvo de um impasse histórico entre o governo e indígenas.
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A raiz do problema está no fato de a barragem ter sido construída dentro da Terra Indígena Laklanõ Xokleng, demarcada legalmente. Por consequência, quando chove, a área é inundada, moradias são afetadas e a comunidade fica ilhada. É assim desde 1992, quando a obra foi entregue pelo governo federal. Aliás, antes mesmo de ficar pronta, já foi motivo de conflito.
ATUALIZAÇÃO: Barragem de José Boiteux é fechada após horas de tensão e conflito com indígenas
Os indígenas relatam que ao longo da história casas, escolas e plantações se perderam por causa da barragem. Citam, inclusive, mortes em decorrência das inundações. Desde então, cobram indenização por causa dos danos provocados pela construção. A Justiça Federal chegou a determinar, em 2003, uma série de ações para reparar os prejuízos (veja lista abaixo), mas as demandas nunca foram cumpridas.
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Em 1997, indígenas invadiram a barragem de José Boiteux e ameaçaram explodir a casa de máquinas. Um ano depois, policiais foram feitos reféns e rodovias acabaram fechadas pelos manifestantes. Em 2005 e em 2014, os moradores das aldeias voltaram a invadir a estrutura, que sofreu depredações e até hoje está sem maquinário para operar as comportas de forma regular.
Já em 2019, a Defesa Civil de Santa Catarina publicou um vídeo mostrando a viabilidade de operar a barragem com o uso de um caminhão hidráulico. Ainda assim, em maio de 2022, as comportas não foram fechadas quando o nível do Rio Itajaí-Açu chegou em seis metros em Blumenau, como prevê o plano de ativação das barragens. Naquele ano, a cidade sofreu uma enchente de 9,4 metros.
Cenário em 2023 e negociações
Nesta semana, o nível da água em Blumenau voltou a passar dos seis metros e novamente a barragem não foi ativada, pelo menos até a manhã deste domingo (8). O governo do Estado chegou a dizer que não fecharia as comportas em José Boiteux porque não havia segurança para a manobra. Porém, neste sábado (7), decidiu que irá operá-la.
O secretário de Estado da Infraestrutura, Jerry Comper, foi até a terra indígena no sábado (7) para negociar. Ouviu da comunidade indígena o pedido de um ônibus, três embarcações, quatro pontos de atendimento de saúde, cestas básicas e água potável, para atender quem seria afetado pelo fechamento das comportas e ficaria ilhado nas aldeias.
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Parecia que o acordo seria fechado entre o governo do Estado e a comunidade Xokleng, mas os indígenas disseram que a liberação para acessar a estrutura só seria dada após os pedidos serem atendidos, o que poderia levar até segunda-feira (9) para ocorrer. Logo após a reunião da aldeia, o governador Jorginho Mello informou ter determinado o fechamento das comportas.
O Bope e a cavalaria da Polícia Militar foram enviados a José Boiteux e começou mais um conflito, com indígenas feridos e viatura da Defesa Civil atacada. A Polícia Federal foi para o local na madrugada deste domingo (8). O fechamento ocorreu no começo da tarde de domingo, mesmo período em que o Ministério Público Federal havia convocado para uma audiência de conciliação.
Um vídeo mostra o governador Jorginho Mello em chamada de vídeo com o cacique-presidente da terra Xokleng. Na gravação, o chefe do Executivo no Estado reitera que irá cumprir com os acordos. Ele se refere não só ao atendimento das demandas imediatas da comunidade em virtude do alagamento, mas também das questões postas no acordo de 2003.
Prova da boa vontade do Estado seria o compromisso de investir R$ 20 milhões em obras nas aldeias, conforme determinou a Justiça Federal. Embora o governo de SC entenda que a compensação deveria ser feita pelo governo federal, que construiu a barragem, se comprometeu em tirar o dinheiro do próprio caixa para executar as obras e depois tentar restituição.
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Obras de compensação previstas
- Abertura e macadamização de estrada com 12 quilômetros, ligando as aldeias Sede e Toldo;
- Melhoria da estrada que liga aldeia Bugio a José Boiteux;
- Elevação de ponte sobre o Rio Platê;
- Construção de ponte pênsil sobre o o Rio Hercílio, em local viável técnica e financeiramente;
- Construção de 10 casas destinadas à aldeia Toldo, da etnia Guarani;
- Construção de escola com 285 metros quadrados;
- Construção de duas casas de pároco;
- Construção de unidade sanitária;
- Construção de um campo de futebol.
A previsão da Defesa Civil de Santa Catarina é começar as obras no início de 2024, porque ainda é preciso fazer as licitações. A expectativa é que tão logo as medidas estejam sendo implementadas o governo faça a licitação para então recuperar a barragem de José Boiteux e conseguir operá-la sem o uso de caminhão hidráulico para descer e subir as comportas.
Linha do tempo do impasse
- A Área Indígena Duque de Caxias, onde a barragem está construída, foi criada em 1926. Inicialmente eram 20 mil hectares, mas ao longo dos anos houve reduções por parte do Estado.
- Em 1965 a área foi titulada: 14.156 hectares foram registrados em favor dos indígenas.
- Em 1976 começou a construção da barragem. A maior parte do alagamento acontece na área demarcada — ocupando um total de 870 hectares. A obra terminou em 1992.
- A partir da década de 1990, índios invadiram empresas de reflorestamento em Doutor Pedrinho e destruíram casas nos arredores da barragem.
- Em fevereiro de 1997, índios ameaçaram explodir a casa de máquinas se não fossem atendidas algumas reivindicações de indenização após a construção da estrutura.
- Policiais foram feitos reféns em julho de 1998 e rodovias acabaram fechadas pelos índios.
- Em novembro de 2001 os índios acamparam novamente na estrutura de contenção de cheias do Alto Vale.
- Em agosto de 2003 o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos assinou uma portaria ampliando as terras indígenas de 14 mil hectares para 37 mil hectares. Os 23 mil hectares a serem somados compõem terras adquiridas por agricultores, que hoje trabalham e subsistem do espaço.
- Em março de 2005, 300 índios invadiram barragem, montaram acampamento e ameaçaram danificar equipamentos, deixando a estrutura sem manutenção e operação.
- Manifestantes indígenas queriam que a Justiça impedisse agricultores de explorar área de extensão da reserva em janeiro de 2009.
- Em junho de 2014, durante uma enchente no Alto Vale do Itajaí, índios invadiram a barragem novamente. O local sofreu depredações e os maquinários sumiram, inviabilizando a operação normal.
- Em 2015 foi assinado um acordo entre indígenas e governos federal e Estadual para que se atendesse os pedidos da comunidade Xokleng e o acesso à barragem fosse liberado. Na enchente daquele ano, bem como nas duas de 2017, a estrutura foi ativada com apoio de caminhão hidráulico.
- Vídeo feito em 2019 mostrou uma operação teste na barragem, mas em maio de 2022, durante outra enchente, ela ficou fora de operação. Defesa Civil disse à época “temerário” ativá-la por causa das condições precárias da estrutura.
- Em junho de 2022, governo do Estado disse ter superado impasses para obras de recuperação e esperava assinar ordem de serviço para começo da reforma no segundo semestre deste ano. A situação não se concretizou.
- Em fevereiro desse ano, a Defesa Civil de Santa Catarina voltou à terra indígena e apresentou o plano de contingência para inundação. A expectativa, na época, era a partir dali já ter acesso liberado à barragem, mas a comunidade reivindicou as obras efetivas. O encontro terminou em frustração.
- O governo do Estado apresentou em setembro agora o plano de investimento de R$ 20 milhões para as obras determinadas pela Justiça Federal. A expectativa é começar as construções no início de 2024.