Na primeira metade do século 18, um projeto do brigadeiro militar José da Silva Paes, primeiro governador da Ilha de Santa Catarina, desenvolveu o sistema defensivo que veio a ser conhecido como “Triângulo de Fogo”. Hoje, as Fortalezas do Norte da Ilha resistem em Florianópolis e contam a história da proteção do território português e de um curto período de invasão espanhola.
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As Fortalezas da Ilha de Santa Catarina, atualmente administradas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e abertas à visitação do público, são compostas pela Fortaleza de São José da Ponta Grossa, na Praia do Forte, única acessada por via terrestre; Fortaleza de Santa Cruz, na ilha de Anhatomirim; e a Fortaleza de Santo Antônio, na ilha de Ratones Grande.
O arquiteto aposentado da UFSC e coordenador do projeto “Restauração das Fortificações Catarinenses”, Roberto Tonera, detalha que a construção das três edificações, que formam o “Triângulo de Fogo” ocorreu em um mesmo período histórico, entre 1739 e 1742.
— O momento da construção desses fortes, é exatamente o momento em que Portugal e Espanha têm o acirramento nas disputas pelo domínio do sul do continente, a região que se estende até o Uruguai — explica Roberto Tonera.
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Cerca de 50 anos antes, Portugal fundou a Colônia de Sacramento no território que hoje pertence ao Uruguai em frente a Buenos Aires, sede do governo espanhol na América. Desde a Colônia de Sacramento até chegar a Ilha de Santa Catarina, não havia nenhuma ocupação espanhola, ainda que o território, no papel, fosse de domínio espanhol.
— Nesse período existia um princípio jurídico que dizia que apesar dos tratados escritos, prevalecia sobre eles a ocupação efetiva do território. Então, mesmo que uma terra esteja no domínio espanhol, se ela for ocupada, colonizada pelos portugueses, ela vai passar a ser portuguesa. A ocupação efetiva do território prevalece sobre o tratado jurídico, escrito — explica o arquiteto.
Veja as Fortalezas da Ilha de SC, que formam “Triângulo de Fogo”
Nessa área, entre a Colônia de Sacramento e a Ilha de Florianópolis, não havia nenhum outro porto seguro que pudesse abrigar uma grande esquadra naval, e na época todos os deslocamentos eram feitos por mar.
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Dessa forma, a localização da atual Florianópolis era extremamente estratégica, em especial a Baía Norte, onde foram construídas as fortalezas que formam o “Triângulo de Fogo”. Isso porque o local tem condições seguras para que os navios parassem e reabastecessem.
— A Ilha de Santa Catarina, principalmente a baía Norte, se configurava como um local bom para abastecimento de água, para reaparelhamento das embarcações, substituição de peças, cascos, mastros, que se danificavam nas viagens de grande percurso. Tinha alimentação farta aqui, tanto de frutas quanto de peixes, farinha e tudo mais — detalha Roberto.
Dessa forma, a construção das fortalezas teve como objetivo principal defender a baía, mais até do que defender a própria Ilha de Santa Catarina.
O momento histórico em que a construção ocorreu, que coincide também com a criação da cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, em 1737, como início da ocupação portuguesa da região, reforça esse plano.
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— A necessidade de fazer essas fortificações era estratégica para garantir a posse dessas terras mais ao sul e permitir essa parada aqui, esse ponto intermediário entre São Paulo, o Rio de Janeiro, e a Colônia de Sacramento, toda a parte Sul do continente — destaca.
O “Triângulo de Fogo”
O conjunto das três Fortalezas do Norte da Ilha, São José da Ponta Grossa, Santa Cruz de Anhatomirim e Santo Antônio de Ratones formam o que é chamado de “Triângulo de Fogo”. Isso porque elas foram idealizadas para cruzar fogos entre si, explica o coordenador do projeto “Restauração das Fortificações Catarinenses”.
Com cada uma das fortalezas disparando de sua posição em relação ao centro da baía, um navio que passasse pelo local não teria como sair “ileso”, fazendo assim um cruzamento de fogos.
— Se discute muito se os canhões dessas fortalezas teriam o alcance suficiente para chegar até ao meio do canal, e portanto fazer um efetivo cruzamento de fogos. Naquela época só existia barco a vela, que não consegue andar em linha reta, como um barco a motor. Ele não poderia passar exatamente no meio do canal. A não ser que tivesse um vento de popa exatamente na direção que ele quer navegar, isso seria muito difícil — destaca Roberto Tonera.
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Para que esse vento favorável ocorresse e a embarcação passasse bem ao meio do canal, talvez o navio precisasse ficar uma semana, duas, esperando o momento certo, algo que não é possível. A embarcação à vela, em especial uma esquadra, não poderia ficar em alto mar por muito tempo, pelo risco de sofrer com intempéries como vento e temporal.
— Então as embarcações, para entrar no canal da Baía Norte, precisavam navegar em ziguezague. Ela teria que se aproximar de uma ou de outra fortaleza nesse percurso — explica.
Outros obstáculos como navios naufragados na região e bancos de areia também tornam difícil que as embarcações passassem em meio às fortalezas sem serem interceptadas. Contudo, em uma ocasião, elas não foram suficientes para conter o avanço espanhol.
A ocupação espanhola
Em fevereiro de 1777, uma esquadra espanhola com mais de 117 embarcações, milhares de canhões e quase 12 mil homens chegou à Ilha de Santa Catarina. Neste mesmo momento, o contingente de embarcações portuguesas na ilha era zero. O resultado: vitória para a Espanha.
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O representante da coroa portuguesa no Rio de Janeiro, com medo que os espanhóis continuassem subindo em direção ao Rio e a outras partes do Brasil, chamou as embarcações que estavam na Ilha de Santa Catarina para proteger a entrada da Baía de Guanabara.
— Então eu sempre digo que é a expressão que os manezinhos usam aqui, farinha pouca, meu pirão primeiro. Então o vice-rei chamou as embarcações para proteger o local onde ele estava e aqui ficou zero embarcações. Os portugueses perderam por WO. A briga já estava vencida — alega o especialista.
Inicialmente, o embate deveria ser naval, entre embarcações, com as fortalezas na retaguarda. Contudo, o número era inferior de homens, canhões, e nulo de embarcações.
Assim, os espanhóis tomaram a ilha e nela ficaram por cerca de um ano e meio, deixando o local somente alguns meses após um tratado com os portugueses e outras negociações. Essa ocasião foi a única em que as fortalezas tiveram um papel de enfrentamento bélico, porém elas desempenharam outras funções ao longo do tempo.
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Fortalezas como marco de território
Roberto Tonera explica que no século 18, a função das fortalezas não era somente atirar em embarcações que estariam passando pelo mar. A principal disputa da época seria entre embarcações, em combates navais. Dessa forma, as fortalezas seriam parte de um conjunto de defesa, e não única estratégia no combate.
— São quatro “pernas” nesse conjunto de defesa: as fortificações, as tropas, os canhões e as embarcações. Só que precisa de homens e de canhões, tanto nas fortalezas quanto nas embarcações para fazer essa defesa da Baía Norte. O verdadeiro combate seria um combate naval, com as embarcações portuguesas se protegendo sob o fogo da artilharia dos fortes — detalha o arquiteto aposentado.
Os canhões das fortalezas atiravam com alcance maior do que o das embarcações, que ficavam resguardadas na linha de fogo das fortalezas. O fogo, do nome “Triângulo de Fogo”, faz referência ao disparo de canhões, já que essas estruturas são conhecidas também como “bocas de fogo”.
A função das fortalezas, contudo, não era apenas militar. Os espaços funcionavam como local administrativo, gerencial, em que o governo português estava instituído. Além disso, ter as fortalezas garantia posse sobre o território.
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— O Barão do Rio Branco, ele conseguiu, em disputas por território, em acordos diplomáticos por posse de territórios na região norte, principalmente no Centro-Oeste, definir que era um local brasileiro, porque era de origem portuguesa, porque ali estava uma fortificação portuguesa — explica.
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Ainda, as fortificações realizavam o papel de controle para as embarcações que passavam rumo ao Sul do país. Mesmo que viajantes não fossem desembarcar na Ilha de Santa Catarina, precisavam parar nas fortalezas para receber uma espécie de autorização para seguir em frente, rumo ao Rio Grande do Sul.
— Além daquela necessidade de parar para reabastecer, tu também tinhas que ter uma espécie de passe livre para seguir viagem se tu quisesses navegar por essas águas aqui. Então isto tinha essa função também de controle do tráfego marítimo naquela época.
Outra função curiosa das fortalezas foi o funcionamento delas como forma de controle sanitário. Com doenças contagiosas e com alta mortalidade no século 19, como febre amarela, tifo e cólera, as próprias tropas militares poderiam estar ameaçadas em caso de uma contaminação em massa.
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Dessa forma, as fortificações funcionavam como locais de triagem e isolamento, e até quarentena para proteger a segurança da Vila de Nossa Senhora do Desterro de epidemias.
— Uma embarcação que chegava à Anhatomirim, se ela estava vindo de um porto que se tinha a notícia de que tinha havido algum tipo de epidemia naquela cidade, iria ficar aqui em quarentena — explica Roberto.
As próprias fortalezas eram utilizadas, por vezes, como local de quarentena, ou então as pessoas ficavam isoladas nas embarcações. Caso viessem já infectados, ou manifestassem a doença na quarentena, eles eram transferidos para enfermarias específicas, para tratar das doenças.
— O controle disso era feito em Anhatomirim, porque Anhatomirim está mais na entrada da barra, e era a fortaleza principal de registro e de controle sanitário. Depois as pessoas eram encaminhadas para outros locais, às vezes aqui para enfermaria do Forte Santana, mas principalmente para o forte de Santo Antônio de Ratones. Aquela fortaleza foi durante várias vezes transformada em “lazareto”, que também é o nome genérico para isolamento — detalha.
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Entre os papéis desempenhados pelas fortalezas ao longo dos anos estiveram esse, de controle sanitário, assim como o controle alfandegário e de passagem, o de marcação de território, e de manifestação de poder e de posse de terra, além da questão bélica em si.
— As pessoas perguntam, as fortalezas funcionaram? Eu digo, sim. Porque se em toda a América Latina nós somos o único país que fala português, é porque as fortalezas funcionaram. Qual era o objetivo das fortalezas? Garantir a posse do território português e até muitos casos, como aconteceu com o Brasil, expandir esses territórios previstos inicialmente nos tratados originais. Então, se nós conhecemos uma nação única falando português, é porque as fortalezas cumpriram o seu papel — finaliza.
Entrada gratuita neste domingo
Quem deseja visitar as Fortalezas da Ilha de Santa Catarina e conhecer de perto a história do “Triângulo de Fogo” terá uma oportunidade neste domingo (25). A entrada nas edificações, que são administradas pela UFSC, será gratuita nesta data.
O Dia de Gratuidade busca ampliar o acesso cultural e histórico desses locais. Sempre no último domingo de cada mês, a entrada nas três fortalezas é gratuita. A ação é promovida pela Coordenadoria das Fortalezas da Ilha de Santa Catarina (CFISC), vinculada à Secretaria de Cultura, Arte e Esporte da UFSC (SeCArtE).
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Os portões ficam abertos das 8h30 às 18h30, com visita livre para todas as idades. Não são permitidos animais, exceto em casos de suporte emocional ou cães-guia. O transporte até as ilhas deve ser contratado nas empresas que oferecem o serviço, não sendo responsabilidade da UFSC. As próximas datas de gratuidade são os dias 29 de setembro e 27 de outubro.
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