O marco temporal se trata de uma tese jurídica que defende que as terras indígenas (TIs) tenham demarcação homologada no Brasil somente caso já fossem ocupadas ou estivessem sob disputa dos povos originários na data da promulgação da Constituição Federal atual, de 5 de outubro de 1988.

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A tese surgiu de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) em um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima, em 2009. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal (STF) incluiu o marco temporal entre as 19 condicionantes adotadas para a demarcação da TI.

Por que isso voltou a ser discutido agora?

A discussão sobre o marco temporal voltou à tona porque o STF consolidou em sessão do dia 21 de setembro de 2023 um placar de 9 a 2 que tornou invalida a tese jurídica. O julgamento teve o primeiro voto proferido dois anos antes e teve interrupções por pedidos de vista ao longo da tramitação.

A Corte fez isso ao julgar especificamente uma ação judicial que trata de um território sob disputa em Santa Catarina. Diferentemente do caso de Roraima, a decisão de agora teve o que a Justiça chama de repercussão geral: ou seja, vai fundamentar outros cerca de 80 casos parecidos e definir os rumos de mais de 300 demarcações pendentes no país.

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Por que o Congresso também tratou do marco temporal?

O tema também ganhou força no Congresso Nacional desde maio de 2023, às vésperas do julgamento ser retomado, porque parlamentares, em especial os da bancada ruralista, tentavam se adiantar à decisão do STF e estabelecer um marco temporal na legislação, também em pressão à Corte.

A iniciativa dos parlamentares se deu a partir do projeto de lei 2.903/23, que passou a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado em agosto.

Antes de chegar aos senadores, a iniciativa havia sido aprovada em maio pela Câmara dos Deputados, onde tramitava a partir do PL 490/07, um projeto originalmente proposto para que a responsabilidade sobre as demarcações sejam repassadas do Executivo ao Legislativo.

Ao retomar o texto antes engavetado na Câmara, o então relator dele, o deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), negociou com líderes partidários uma nova versão que incluiu a data da promulgação da Constituição como o marco temporal para se homologar demarcações, entre outros pontos.

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Em 24 de maio, a pedido do deputado catarinense Zé Trovão (PL), os parlamentares aprovaram regime de urgência ao texto, por 324 votos favoráveis ante 131 contrários. Já no dia 30 do mesmo mês, a Câmara aprovou o PL 490/2007, por 283 votos favoráveis contra 155 contrários. Houve ainda uma abstenção.

O projeto seguiu então para o Senado, com previsão de dar tramitação mais lenta ao texto, conforme anunciou o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na ocasião. Já em 27 de setembro, após o STF ter invalidado a tese jurídica, o texto foi então aprovado pelos senadores e repassado para sanção presidencial.

Em 20 de outubro, no entanto, o presidente Lula (PT) vetou parcialmente o projeto de lei, alegando haver “vício de inconstitucionalidade” e ter tomado a medida “de acordo com a decisão do Supremo sobre o tema”.

Já em 14 de dezembro, o Congresso Nacional derrubou o veto do presidente. Ainda assim, lideranças indígenas indicaram que voltariam ao STF para ter uma reafirmação da inconstitucionalidade da medida.

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A iniciativa dos parlamentares é cercada de insegurança jurídica por ter partido de um projeto de lei, e não de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), necessária para alterar a Constituição, que está no topo do ordenamento jurídico, acima da legislação federal.

Além disso, há o entendimento ao menos por parte do STF, responsável por guardar a Constituição, de que a tese do marco temporal viola direitos indígenas tidos como fundamentais, que são, portanto, cláusulas pétreas — ou seja, não podem ser suprimidas do texto sequer por emendas constitucionais.

Qual foi o caso julgado no STF?

O STF tratou do marco temporal ao analisar um recurso extraordinário mobilizado pela Funai por conta da possível ampliação da terra indígena Ibirama-Laklaño, espalhada por quatro municípios catarinenses do Alto Vale do Itajaí (Doutor Pedrinho, Vitor Meirelles, José Boiteux e Itaiópolis) e reivindicada pelo povo Xokleng.

A ampliação da TI era contestada na Justiça pelo governo catarinense desde 2003, quando o Ministério da Justiça reconheceu a área para demarcação.

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Em instâncias anteriores, a Justiça deu parecer favorável ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA-SC), que alegava que parte do território reivindicado pelos Xokleng se sobrepõe à Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, criada em 1977, e pedia reintegração de posse.

Há ainda uma Ação Cível Originária (ACO) em tramitação no STF, a de número 1100, em que proprietários rurais, empresas e municípios também contestam a demarcação, por terem imóveis que se sobrepõem à área demarcada.

O primeiro voto do Plenário do STF sobre a validade do marco temporal a questão foi dado em setembro de 2021, pelo relator do caso na Corte, o ministro Edson Fachin, que se colocou contrário ao marco temporal.

Ele defendeu uma outra tese jurídica para basear demarcações, a da tradicionalidade: assim, um laudo antropológico produzido pela Funai atesta o tradicional vínculo de um povo com o espaço sob disputa. Essa relação se daria não necessariamente pela ocupação física, mas também cultural.

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Naquele mesmo mês, o ministro Kassio Nunes Marques também proferiu seu voto, se colocando a favor do marco temporal. Ele argumentou que a tese teria sido pacificada pelo julgamento da demarcação da TI Raposa Serra do Sol, de 12 anos antes, que, no entanto, não teve repercussão geral.

De volta a setembro de 2021, o julgamento sobre a TI catarinense Ibirama-Laklaño foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, para que pudesse melhor analisar a questão.

Já quase dois anos depois, na retomada do julgamento em junho, Moraes se colocou contrário ao marco temporal, mas defendeu uma espécie de meio termo: os povos originários têm a posse da terra reconhecida na medida em que outros ocupantes das mesmas áreas sejam indenizados para sair delas.

Na sequência ao voto, o ministro André Mendonça pediu vista do caso, suspendendo ele de novo. Ao retomar o caso, ele anunciou o voto favorável à tese, o que empatou o placar do Plenário em 2 a 2.

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No fim de agosto, os ministros Cristiano Zanin, que tinha voto cercado de expectativa, e Luís Roberto Barroso se manifestaram em contrariedade ao marco temporal, o que colocou o placar em 4 a 2.

Ao proferir seu voto, Barroso protagonizou debate acalorado com Moraes sobre eventuais indenizações a posseiros de boa-fé. Ele disse que essa discussão não caberia a esse julgamento, por não haver fato concreto para ser analisado. Isso poderia ser avaliado, por exemplo, a partir da ACO 1100, segundo ele.

Em 20 de setembro de 2023, com a volta do julgamento, o ministro Dias Toffoli deu novo voto contrário à tese jurídica, o que levou o placar a 5 a 2 para derrubá-la.

Já na sessão do dia seguinte, os outros quatro ministros da Corte proferiram seus votos, todos eles reconhecendo ser inconstitucional a tese jurídica do marco temporal: Luiz Fux, que formou maioria em 6 a 2, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente do STF, Rosa Weber.

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Como são feitas as demarcações?

Antes do julgamento do STF e da aprovação do PL 490/07, a legislação não determinava uma data específica como critério para as demarcações, ou seja, um marco na linha do tempo. A Constituição apenas prevê em seu artigo 231 que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas se destinem à posse permanente deles.

Ao descrever que territórios são esses, o texto pontua o seguinte: “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

A Constituição também estabelece que a União deveria encerrar todas as devidas demarcações em até cinco anos contados a partir da promulgação do texto (ou seja, até 5 de outubro de 1993), mas isso não se cumpriu, com territórios ainda hoje sob disputa e à espera de eventual homologação.

O processo de demarcação das TIs é definido pela Lei 6001/1973, popularmente conhecida como Estatuto do Índio. A tramitação começa com uma série de estudos da Funai, que incluem de questões antropológicas a um levantamento fundiário da terra sob análise, passa pelo Ministério da Justiça e termina com a homologação por decreto do presidente.

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Quais os argumentos contrários e favoráveis ao marco temporal?

Em oposição ao marco temporal, os indígenas afirmam que não teriam como ocupar, à época da assinatura da Constituição, áreas hoje reivindicadas devido a eles terem sido vítimas de histórica perseguição e também serem tutelados por governos àquela altura.

Em Santa Catarina, a TI Ibirama-Laklaño foi reduzida aos atuais 14 mil hectares sob anuência do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão anterior à Funai, ao longo do século passado — os Xokleng reivindicam hoje uma área de 37 mil hectares.

Nos anos 1970, o SPI também permitiu a construção de uma barragem dentro da TI na altura de José Boiteux, que tornou alagada a área produtiva dos indígenas e alterou o perfil do rio Hercílio no trecho, agora represado e com menos peixes, o que pressiona a insegurança alimentar dos Xokleng. As aldeias do território ainda se espalham hoje por áreas de encosta.

Além disso, os Xokleng foram, à época da colonização, alvo de histórica perseguição e mortes por “bugreiros”, como eram chamados os integrantes de tropas paramilitares contratadas para dizimar os indígenas, pejorativamente chamados de “bugres”.

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Já quem é favorável ao marco temporal afirma que ele impediria a remoção de famílias e de produtores rurais também já tradicionalmente instalados em propriedades com escrituras ou ao menos documentos de compra e venda, mas com limites que hoje se sobrepõem às terras reivindicadas pelos indígenas.

Em Santa Catarina, algumas famílias argumentam estarem instaladas por até centenas de anos em pequenas propriedades deste tipo, que foram colonizadas no início do século passado com a chegada de imigrantes italianos e alemães e repassadas por gerações desde então.

Isso vai além da disputa da TI Ibirama-Laklaño: são os casos, por exemplo, de herdeiros de colonos das regiões de Cunha Porã e Saudades, no Extremo-Oeste catarinense, onde há histórica disputa envolvendo a demarcação da TI Guarani de Araçá’í, e também de moradores da Enseada de Brito, em Palhoça, na Grande Florianópolis, que se opõem às demarcações dos povos Guarani Mbyá e Nhandeva.

Em audiência na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) em 15 de maio de 2023, deputados estaduais afirmaram ainda, em defesa do marco temporal, que ele iria inibir a insegurança jurídica no campo e evitar o surgimento de eventuais conflitos pela posse da terra — foi levantada inclusive uma ameaça de “derramamento de sangue” no caso de veto do STF à tese.

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