As fortes chuvas que provocaram alagamentos e deslizamentos e deixaram mais de 100 mortos no Rio Grande do Sul ultrapassaram a marca histórica do nível do rio Guaíba em Porto Alegre, que viveu a maior enchente até então em 1941.

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Apesar de não ser a primeira tragédia relacionada às chuvas no Sul do país, especialistas apontam que as mudanças climáticas têm intensificado e tornado essas situações mais frequentes.

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Afinal, onde fica a Lagoa dos Patos e por que tem esse nome?

Uma postagem publicada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no X (antigo Twitter) relaciona a foto do ano de 2023 com o agravamento da situação climática, e como tudo isso vem sendo alertado por pesquisadores.

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O aumento das temperaturas e do carbono que circula na atmosfera provoca maior calor nos oceanos que, aquecidos, causam mais fenômenos como ciclones e também prejudicam as florestas. Tudo isso impacta as chuvas e secas e o ciclo da água, que fica desregulado.

O El Niño, fenômeno que aumenta a temperatura da superfície da água no Oceano Pacífico, provocando nuvens mais carregadas e chuva, também possui impacto nesse processo, e é acentuado pelas mudanças climáticas. O tema é foco de estudo das pesquisas da professora de Oceanografia da UFSC, Regina Rodrigues.

O fenômeno do El Niño é recorrente e sempre ocorreu, porém tem se tornado cada vez mais frequente e durado mais tempo. Além disso, os impactos nos eventos climáticos têm se mostrado mais intensos.

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— O que as mudanças climáticas fazem? Uma, elas estão intensificando um pouco o El Niño. Então, esses bloqueios atmosféricos, que deixam essa massa de ar quente, estão ficando um pouco mais fortes. E o outro fator é que, com as mudanças climáticas, a atmosfera está mais quente. Quando a atmosfera está mais quente, ela carrega mais umidade, onde os montantes de chuva são muito maiores. E é isso que ocorreu no Rio Grande do Sul. Chegamos a chuvas, a precipitação muito, muito acima da média, que bateu recordes históricos — detalha a pesquisadora.

Ela destaca que anteriormente os fenômenos El Niño e La Niña, que provocam chuvas intensas ou então secas na região Sul — neste caso o La Niña — eram intercalados com anos “neutros”, em que não havia influência nem de um nem de outro fenômeno. Agora, os sistemas vêm um na sequência do outro.

— Como cientista, isso me preocupa muito. Hoje o que a gente vê é que a gente está pulando de anos consecutivos de La Niña, que também são ruins, que causam secas no Sul e chuvas torrenciais no Norte e Nordeste, e pulou já direto para um El Niño. E agora a gente tem previsão de voltar para La Niña. Então não tem mais ano neutro, de normalidade. A gente vai de um lado para o outro, e todos eles geram muitos extremos no Brasil — explica.

A professora da UFSC e integrante do grupos de pesquisa “Gestão da Logística Humanitária, Urbana e de Desastres”, Franciely Veloso Aragão, explica que o La Niña geralmente se reflete no sul do país em condições climáticas mais secas e frias, com maior risco de secas e incêndios florestais. Contudo, somado às mudanças climáticas, o que era “previsível” se torna imprevisível, e os fenômenos se tornam extremos.

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— Embora a presença do La Niña possa mitigar temporariamente o risco de inundações, Santa Catarina ainda enfrenta uma série de desafios climáticos complexos. Por exemplo, a alternância entre períodos de seca intensa e chuvas torrenciais pode resultar em inundações repentinas e deslizamentos de terra, mesmo durante um período de La Niña — detalha Franciely.

Altas temperaturas causam aumento das chuvas

A pesquisadora explica que o aumento das temperaturas, reflexo das mudanças climáticas e do aquecimento global, também tem impacto direto nas chuvas mais intensas.

— O relatório recente da Organização Meteorológica Mundial (OMM) destacou que 2023 foi o ano mais quente já registrado, evidenciando o aumento das temperaturas globais. Esse aquecimento global resulta em maior evaporação da água dos oceanos, o que, por sua vez, eleva a umidade atmosférica e intensifica as chuvas. Como consequência, os sistemas de drenagem podem ficar sobrecarregados e os rios transbordarem, levando a enchentes mais graves — afirma.

As mudanças climáticas contribuíram para as chuvas intensas que resultaram nas enchentes no Rio Grande do Sul. A situação torna as comunidades mais vulneráveis aos efeitos das inundações, especialmente em cidades pouco planejadas para ocorrências como essas. É o que explica a professora Daiane Genaro Chiroli da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFR), que estuda gestão urbana e de desastres.

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— Também é evidente que um plano diretor que não leve em consideração os riscos locais aumenta a exposição das pessoas aos perigos. O planejamento urbano inadequado, desprovido de medidas de prevenção e mitigação de desastres naturais, deixa as comunidades mais vulneráveis aos impactos adversos do clima — alega a professora.

A tragédia vivida no Rio Grande do Sul, porém, serve de alerta para Santa Catarina. Isso porque, segundo a professora Daiane, as mudanças climáticas terão impacto em todo o mundo, afetando áreas vulneráveis que possuem risco para inundação e deslizamentos.

— O aumento das temperaturas globais tem o potencial de modificar os padrões de precipitação na região, ocasionando chuvas mais intensas e prolongadas. Isso, por sua vez, pode elevar consideravelmente o risco de enchentes e deslizamentos de terra em áreas vulneráveis do Estado. Portanto, existe uma possibilidade real de Santa Catarina vivenciar situações extremas de inundação semelhantes às do RS, caso as mudanças climáticas continuem a se intensificar — destaca.

Ela explica que as mudanças climáticas não resultam somente em enchentes, mas podem trazer também outros eventos climáticos extremos, como ondas de calor e secas prolongadas, o que pode resultar em problemas na infraestrutura urbana, aumento das temperaturas e escassez de água.

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— Além disso, as cidades costeiras de Santa Catarina estão particularmente vulneráveis ao aumento do nível do mar e à erosão costeira, representando uma ameaça às comunidades litorâneas e à infraestrutura crítica. Portanto, é crucial desenvolver políticas eficazes e ações globais para enfrentar esses desafios. Isso inclui a necessidade de revisar e fortalecer os planos diretores das cidades, levando em consideração o histórico das áreas e garantindo a participação pública no processo de tomada de decisão — relata a pesquisadora.

Chuvas devem ter aumento de 60%, indica Inpe

Estudos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que algumas cidade do Rio Grande do Sul terão aumento de 60% no volume de tempestades nos próximos 30 anos. As regiões de maior atenção são o nordeste do estado gaúcho e centro-sul de Santa Catarina, com variação de 40% a 60% de aumento nas chuvas. As informações são de O Globo.

Em outras áreas do Rio Grande do Sul, a intensificação dos temporais deve variar entre 20% a 40%. As informações do Inpe foram compiladas no Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, do governo federal.

Outras regiões do país, como o Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Bahia também tem previsão de aumento de chuvas extremas segundo o estudo. Pesquisadores da PUC-Rio, Uerj, UFRB, Metodista e Fiocruz elaboraram mapas que mostram as áreas mais afetadas, material que está disponível para planejamento do governo federal e também para consulta pública.

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Para chegar a previsão, são consideradas variáveis como radiação solar, temperatura, pressão, força dos ventos e histórico de chuvas. Esses índices são multiplicados pelo índice de gases de efeito estufa, o que tem gradativamente aumentado em todo o mundo.

— A parte do modelo que é diretamente afetada com o aumento de gases de efeito estufa é a radiação, em seguida muda a temperatura, o aquecimento das superfícies, vento, as coisas vão se desencadeando. Cada ponto de todo o planeta tem um valor de vento, umidade e pressão: é assim que o modelo evolui. Se mudou a temperatura em todo o planeta, o que vai acontecer nessa região? São respostas que o modelo matemático traz. O clima se organizou de uma forma em que alguns lugares chove mais, e outros não chove. Os cenários indicam mesmo o aumento de chuva no sul e menos no centro do país — explica a pesquisadora do Inpe e uma das responsáveis pelo modelo, Chou Sin Chan.

No estudo, foi levantado também o Índice de Capacidade Municipal (ICM), que corresponde a capacidade dos municípios responderem a desastres climáticos. Nesse levantamento, 3.290 cidades apareceram com capacidade muito baixa de resposta a desastres climáticos.

Já o Índice de Risco Qualitativo (IRQ), que aponta a possibilidade de cada município sofrer um desastre, indica risco em pelo menos 80% do território nacional. Entre os desastres avaliados estão alagamento, enxurrada, seca, incêndios florestais, erosão, granizo, inundação, movimento de massa, onda de frio, ciclone, vendaval e tornado.

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Como conter o avanço da emergência climática

A oceanógrafa Regina Rodrigues, que realiza pesquisas dentro da área de mudanças climáticas, explica que entre as principais ações para parar o avanço do aquecimento global e da emergência climática está a contenção da emissão de gases do efeito estufa, com ações como o combate ao desmatamento.

— São dois fatores principais para a emissão: parar de queimar combustível fóssil e o desmatamento aqui no Brasil, que é onde a gente peca muito, porque 40% das nossas emissões vem de desmatamento. A gente tem que parar o desmatamento e fazer uma transição para a energia renovável e sair dessa dependência de petróleo — destaca a pesquisadora Regina.

Ela também reforça a necessidade das autoridades e população trazerem questões ambientais para as políticas públicas, com pautas nos âmbitos locais, estaduais e nacionais.

— O custo que está sendo isso aí, em termos de vidas, de infraestrutura, de tudo. Agora imagina todo ano, em algum lugar do Brasil. O ano passado já foi a seca na Amazônia, já tivemos chuvas torrenciais. O Brasil não vai ter condições de ficar se reerguendo de todos esses desastres naturais — finaliza.

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Além do combate aos fatores que geram as mudanças climáticas, o investimento em pesquisa e infraestrutura também precisa ser levado em consideração, com sistemas de alerta, planejamento urbano sustentável e políticas de resiliência climática.

— Se não tomarmos medidas efetivas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, podemos esperar enfrentar desafios ainda maiores nas próximas décadas. Isso inclui mais eventos climáticos extremos, como chuvas intensas, enchentes, secas prolongadas e ondas de calor, que podem ter consequências devastadoras para as comunidades, economias e ecossistemas locais — afirma a professora Franciely.

Entre os principais investimentos estão a pesquisa científica e uma abordagem que considere os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), assim como a conservação de áreas naturais para reduzir os impactos das mudanças climáticas

— Investir em pesquisa científica e adotar uma abordagem transparente e colaborativa são passos essenciais para desenvolver soluções eficazes e sustentáveis. Em última análise, é fundamental reconhecer a urgência de agir agora para mitigar os impactos das mudanças climáticas e construir cidades mais resilientes e preparadas para enfrentar os desafios do futuro — finaliza Franciely.

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Chuvas afetam cidades do Rio Grande do Sul


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